1 de março de 2020

455 Anos sem direito universal à cidade

Em um prazo muito curto de tempo o brasileiro tem se sentido honrado com a matéria das pesquisadoras que se dedicaram e mapearam o genoma deste novo vírus que tem representado um perigo mundial, e ontem mais um caso de chuvas na cidade que matou cidadãos, inviabilizou diversas moradias e bairros inteiros estão sofrendo com a cheia. Qual a relação podemos traçar entre os dois?

Pois, ao menos uma relação importantíssima há. Ambos os casos refletem diretamente, a meu ver, o bem sucedido entendimento cultural do direito a saúde universal, pensamento de direito universal este que não chegou no campo da arquitetura e engenharias.O que quero dizer com isso, mesmo o SUS tendo mil problemas, o povo entende que tem direito a médico, hospital, e outros de graça e a academia e os médicos, também entendem seu papel profissional diante do povo. O mesmo não acontece no campo profissional das arquiteturas e engenharias. 

Vivemos em cidades que se constituíram com base em algumas leis do capital: lobby automobilístico, loteamentos de grandes terrenos formando bairros e coisas do gênero construíram a maior parte de nossos espaços. Dias como os de hoje (1 de março de 2020) este erro de planejamento e projeto cobram caro, mas isso não pode ser desculpa para o erro perdurar por décadas, quase um século pelo menos. 

O problema é que esta lógica de conceber e tratar os espaços segue firme, optamos com a Copa das Copas e Olimpíada das Olimpíadas, fazer mais uma vez o mais do mesmo. Construímos com nossas arquiteturas e engenharias (algumas nem tão nossas assim) uma cidade desigual com implantação de embelezamentos por um lado e apagamentos por outro. Assim caminhamos com remoções e esquecimentos dos locais onde moram a maior parte da nossa população. População esta para quem sobra a autoconstrução como ferramenta de sobrevivência. Nosso olhar profissional é tão pouco universalista que muitos de nós ainda enxergamos a autoconstrução popular como parte do problema de exercício ilegal da profissão.

Mesmo a criação da Lei de Assistência Técnica para Habitação de Interesse Social (conheça  a lei aqui) não tem o alcance pleno pois o povo a desconhece, tem baixa implementação nacionals, apesar de ser um instrumento excelente para iniciar este processo de universalização do direito a cidade. É triste perceber como a visão de mundo implementada sobre a profissão nos afeta. 

A milênios não há grandes inovações caras e de difícil implementação em projetos e planejamento de saneamento. Citamos por exemplo: cuidado com as águas, cuidado ambiental, construção de praças como pontos de lazer e encontros comunitários, arborização, entre outros que contribuam para a qualidade urbana e direito de vida digna nas cidades. O que nos falta é sim, a coragem de pensar as cidades de forma não segregada.

O tempo que nos vangloriamos de roda gigante ou BRT, ou algo do gênero, devemos gastar trazendo a cidade a escala que ela vive, do chão, do aperto de mão do xingamento e dos abraços, hoje enquanto muitos de nós que conseguem impor alguma voz dentro deste campo profissional estamos secos em nossas casas, inúmeros (inclusive profissionais amigos arquitetos e engenheiros) estão tirando água de suas casas, outros vendo a água entrar pela laje e viverão pelo menos semanas de mofo e cheiro ruim em casa. 

Uma chuva destas reflete para quem sofre dias sem dormir direito, trabalho duro salvando o que pode de móveis, salvando ao menos um cômodo da casa para aconchegar toda a família. São cidadãos que constróem a vida destas cidades e ficam a míngua, como fora no início do ano no Norte Fluminense, hoje foi na região metropolitana. 

Que o município do Rio de Janeiro, com toda sua complexidade, neste ano em que foi eleito Capital Mundial da Arquitetura, assuma a responsabilidade de ser exemplo da universalização do direito a construir. Isto não é um simples aplicar a lei d ATHIS, vai muito além, precisamos de um trabalho estruturante de modificação da ideia de pra quem construímos nossas cidades, esta luta é imensa mas tem que ser traçada. Precisamos de uma cidade que fomente do direito a arquitetos e engenheiros públicos que atendam a todos os cidadãos e não mais ao lobby de quem investe capital imobiliário nela apenas, até porque neste momento estes lobbystas da cidade estão secos e confortáveis. Os donos da roda gigante tem telhados e lajes impermeabilizadas, a maior parte da nossa população não!