10 de julho de 2020

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Pobreza e Desigualdade – Reflexões para os tempos de Escassez

Em notícias recentes (IHU e OHNCHR) Philip Alston, relator especial sobre pobreza extrema e direitos humanos alerta sobre os riscos de aumento alarmante da desigualdade social diante da pandemia. O relator por sua vez considera que uma das maiores contribuições para tal deve-se a escolhas de políticas de Estado cuja ação prática se configura em priorizar os interesses econômicos dos mais ricos em detrimento dos mais pobres.

Alston alerta para duas questões que são muito caras a nós: a escolha política por práticas que caberiam em um processo de darwinismo social, em resumo, diante da maior crise econômica, climática, e agora sanitária/humanitária, o relator lança como crítica que houve falta de ambição para erradicar a pobreza e complacência das instituições internacionais para medir a redução da pobreza (como citam os textos).

Vale lembrar que, o avanço da pandemia e a brusca paragem na roda da fortuna do sistema por sua vez colocou o mundo em outro eixo. Por um lado, dentro do risco de, ao termos a ascensão de governos de extrema direita ao redor do globo, cuja pauta muitas das vezes envolve assumir o darwinismo social como saída. A escolha política desta linha ideológica para o enfrentamento da pobreza passa pela escolha de erradicar o pobre em defesa de uma economia monetária e rentista que o aliena tanto do seu fazer quanto da sua existência como parte dela.

O que o relator nos revela não é algo de novo. Faz décadas que o mundo relata suas grandes crises globais. Tanto a desigualdade social quanto a crise climática já estavam postas a tempos, assim como a crise econômica, que sempre corria disfarçada pelo simbólico do crescimento econômico-monetário. Infelizmente foram poucos os locais no mundo que estimaram combater de frente a desigualdade social, pauta esta que nos é muito cara. Construir sistemas de proteção social e de fortalecimento do fazer comunitário poderia ser a grande base estruturante para resolver inúmeros dos nossos problemas de vulnerabilidades.

Com base no indicie de multidimensional de pobreza apresentado em 2019 pelas Nações Unidas estima-se que 500 milhões de pessoas vivem na pobreza no mundo e cerca de 1.3 bilhão de pessoas vivem em condições multidimensionais de pobreza. Estas mesmas ainda se distribuem de forma desigual pelos globo, tendendo a um peso maior para países periféricos. Vale lembrar que próprio Banco Mundial em 2018 já apresentava dados de que metade da população do globo vivia em condições de pobreza e incapacidade de ter o básico para sobrevivência.

Os dados levantados comprovam a importância de se debater e construir saídas que busquem combater a pobreza de frente. Importa para tal, primeiramente assumir que a pobreza está intimamente conectada a desigualdade e não necessariamente conectada a acesso monetário ou de bens de consumo. Importa tecer esta crítica, e assumir que as pautas de mitigação da pobreza via políticas afirmativas dependem  necessariamente de um conjunto mais amplo de políticas públicas de sistemas da proteção social necessária que devemos consolidar, onde as políticas afirmativas se tornem complementares e também constituintes das soluções.

Ressalto que nenhuma mudança se viabilizará sem um processo contínuo de lutas e emancipação popular. A complacência das pautas que tanto atrasaram decisões fundamentais para mitigação da desigualdade e controle da crise climática se sustentam por uma rede de grandes poderes de elites globais das quais o pobre (maior parte da população) é incapaz de acessar e usufruir. Os ciclos de levantes diversos que vem se organizando pelo globo os mais recentes que se iniciam por volta de 2009, tem demonstrado o indício deste anseio e de que o caminho será as lutas.

A universalização da saúde, da segurança alimentar e da educação deveriam estar nas linhas de frente dos processos de redução de desigualdade. Construir sistemas mais equitativos por sua vez precisariam passar por uma lógica de pensar os recursos que os envolvem por uma outro modelo ético. O enfrentamento que está posto diante de nós é que talvez não seja possível mais pensar a mitigação da desigualdade sem a redistribuição das riquezas e sem a democratização dos sistemas de poder e principalmente, sem as lutas sociais que promovem as conquistas destas mudanças.

Retomando o fio, Alston destaca com preocupação de que as medidas tomadas e o momento de pandemia estejam agravando o processo de desigualdade e super concentrando o poder nas elites globais. Seu destaque é assertivo a meu ver, visto que se os sistemas de mitigação da desigualdade via distribuição das riquezas não foram implementados em tempos de hiperdesenvolvimento da lógica de construção das mesmas, que dirá em momentos como o que vivemos onde a pauta é o limiar da escassez dos recursos que garantem a vida humana na terra?

Uma das capturas do sistema vigente consiste em desmontar as estruturas que garantem as amplas participações das lutas sociais, quando não enfraquece-las a partir da cooptação de lideranças, aparelhamentos, e táticas similares.

Outro elemento que não podemos esquecer das vistas são os dados. Na teia de controle de dados e algoritmos, o homem é levado a se tornar produto a ser listado, cartografado e gerenciado por uma série de algoritmos que hegemonizam globalmente o que vemos não vemos, aceitamos, gostamos ou não gostamos. Se em determinado momento incidimos sobre a propriedade da terra e dela criamos grilhões de desigualdade, depois incidimos sobre a apropriação do trabalho alheio, hoje a desigualdade incide sobre a apropriação de dados.

Ao mesmo tempo em que o mundo global vende a imagem de que não há problema em compartilharmos nossos dados, gostos, curtidas, afinidades, gestos, lugares, sabores, ele opera em impedir que dados referentes a este mesmo mundo de poder e controle sejam compartilhados. Assim, o google tem direitos de fazer várias coisas com o fato de saber que gostamos de torta de maçã, mas não é crítico a prisão política de Julian Assange cujo crime teria sido a exposição via wikileaks de diversos enlaces escusos sobre corporações e governos.

Algumas pautas globais para nossa reflexão:
Ocupação das minorias nos espaços de poder

Uma pauta a principio acertada que pode dar alguma brecha de lutas. Porém o caminho não está na saída individual dentro de instancias coletivas já consolidadas nas máquinas dos poderes vigentes. Precisamos consolidar por meio das lutas (pois não virá de cima para baixo este reconhecimento) outras esferas de organização social na participação dos processos de tomada de decisão e gestão.

Neste caso, mais do que ocupar um cargo no poder constituído, a potencia está em instrumentalizar outros espaços de poder. As chamadas candidaturas participativas ou coletivas são uma tentativa deste processo, a construção de campanhas coletivas que assumem publicamente o candidato como o a voz representante de um corpo maior. Outras partes de instrumentos seriam as retomadas das esferas populares de decisão: associações de bairro, de categoria, de cultura, etc.

Porém ressalta-se que a burocratização excessiva deve ser controlada a medida em que ela inibe a real participação dinâmica da sociedade na produção de seu próprio fazer cidadão.

Taxação das grandes fortunas e heranças + renda básica universal

O duo taxação das grandes fortunas e heranças + renda básica universal podem proporcionar um campo da redistribuição monetária, alimentar o mercado de produção e consumo de bens e serviços, gerar melhor condição de democratização do conhecimento. A substituição do acúmulo travado pelo dinheiro circulando, pode capitalizar minimamente os mais pobres, garantindo um elemento de proteção social, pode melhorar a economia de varejo em escala global e por sua vez garantir o giro do capital, além de aumentar os recursos governamentais.

É um equívoco pensar e propagar o binômio monetário acima como entrave. A redistribuição de renda permitiria a injeção desta na economia e por sua consequência o retorno de recursos para os sistemas públicos, assim como o retorno de lucro para os donos dos bens de produção.

Junto a isso deve-se elaborar planos de recuperação econômica que priorizem os trabalhadores em risco, trabalhadores informais e desempregados. Criar mecanismos de proteção e crédito a micro, pequenas e médias empresas, negócios locais, familiares e similares.

Aumento de recursos públicos no poder público

Precisamos de uma ação radical em escala global com rebatimentos para as múltiplas escalas de territórios. É preciso assumir que Educação, Saúde, Seguridade Social, Habitação, lazer entre outros são direitos humanos inalienáveis. Pensamos assim uma economia cuja base de crescimento não seja o PIB. Precisamos elaborar uma nova base de valores para a construção da esfera pública, baseada na conservação máxima do meio ambiente, garantindo sua biodiversidade, reduzindo a propriedade privada de terras em troca da recuperação de biomas, atuando com os investimentos em setores estratégicos a vida como os já citados acima e promover a redução excessiva do consumo de supérfluos.

A visão multidimensional da pobreza passa por estes atributos. Devemos ter a compreensão de que são valores acima de qualquer questão, e que devem estar fora das lógicas de mercado e financeirização.  Precisamos construir instrumentos que redistribuam o poder de voz e ação sobre planos e projetos, traze-los de volta a sociedade civil. Conselhos de bairro e de rua podem organizar junto a corpos técnicos e políticos as melhores estratégias e encaminhamentos para seus territórios.

Produzir ações integradas que consiga operacionalizar de forma planificada nacionalmente (para economia de recursos e para garantir o olhar sobre o todo). Criando instancias autônomas, células de gestão local capazes de garantir do diagnóstico ao projeto, do projeto a concretização, da concretização a auto-avaliação e crítica pós execução.

Este é o melhor instrumento para produzirmos uma saída equitativa que consiga se confirmar estruturante socialmente e garanta minimamente economia de recursos em meio a escassez.

Redes de Confiabilidade

Precisamos retomar o fazer coletivo popular, reconfigurar em quem damos crédito. O estranho que deixa de ser estranho quando está sob a marca de um aplicativo.

Um dos grandes sucessos das corporações de controle e captura de dados está em sua capacidade de operar como um espaço. A empresa não é protagonista direta das ações, apenas espacializa e scaneia as ações que acontecem na suas plataformas. E nós utilizamos das mesmas devido ao grau de confiabilidade que temos nestas. Grau este construído por um sistema complexo de marketing em nível global e de confiança social a nível da rede de usuários. Não é necessariamente o app de automóveis particulares que nos faz confiar, mas o fato de conhecermos uma rede de amigos que ou utilizam e gostam ou trabalham para estes aplicativos.

Por este motivo notamos que a noção de disrupção digital quando entendida como processo de otimização por meios de tecnologias que garantam maior aderência a um público maior não garante a redução da desigualdade social. Isso a medida em que o protagonista de uso dos sistemas não é quem realmente tem o poder ou a voz.

A confiabilidade é um instrumento que precisamos recuperar para lidar com as lutas. Muito temos falado sobre o avanço do fakenews como instrumento de crescimento do conservadorismo, mas pouco falamos do outro lado da moeda: o sincericídio estampado nestes. Há uma angústia popular que busca e valoriza as posições sinceras, mesmo que das mais absurdas, isso parece gerar um efeito de confiança em meio a incertezas. Nas margens do sincericídio e da crise das representações, tem crescido as forças de extrema direita.

Retomar o rumo da confiança, mostrar a nudez das lutas, das limitações e das contradições que se estampam nelas. Ainda que crua, a história precisa retomar a si como é, comungar os erros e acertos e não arriscar-se ao enviesamento como saída. Um exemplo recente e fundamental ainda dado em apps: A luta dos entregadores de aplicativos trouxe o resultado deste complexo de confiabilidade. Conseguiram organizar um dia de luta em escala nacional e obtiveram como resultado adesão popular suficiente para derrubar significativamente a nota de diversos aplicativos de entrega.

As lutas são cada vez mais interseccionais, plurais e múltiplas

Os pobres são a força motriz do mundo. Estes são plurais em crenças, ideologias, filosofias, desigualdades. Não há mais escala no mundo que consiga compor os pobres em bandeiras que não reflitam todas as contradições nelas existentes e busquem o mínimo elo comum nas lutas.  As estruturas de representação se tornam abstrações para as angustias dos pobres a medida em que elas se transformam no encastelamento dos mesmos.

Diante de uma elite global que tenderá a se fechar ainda mais na desigualdade e somando ao programa de desmonte dos sistemas mais coletivos de participação e decisão popular que vem sendo implementados desde a hegemonia neoliberal (não que isso só ocorra nela).

Assim, temos de nos preparar para um mundo onde os caminhos da desigualdade tendem a se tornar mais extremos e a construção de lutas comuns mais dificultada pela fragmentação social. Desde meados dos anos 90 do séc. XX,  tendíamos a lutas com certo grau de aberturas e conveniências de convívio mútuo entre diversas forças, desde ONGs a agentes comunitários até alguns grandes financistas mundiais que tencionavam a necessidade de controle da abstração do sistema financeiro, os anos que seguirão pós 2020 podem nos colocar em condições mais radicais e pautas mais selvagens.

Governos mais reacionários, organizações da sociedade civil tradicionais limitadas pelos cristalizados processos de alienação, cooptação e distanciamento das camadas sociais. Novos levantes de organização social surgem sem um corpo central em lutas locais porém que tem veios demarcados com agendas globais. No mais, seremos capazes de construir uma agenda comum das lutas dos pobres em meio as múltiplas lutas que já traçamos atualmente?

No século XX em meio as ebulições das libertações do continente, Kwame Nkrumah discursava:

                    “Atualmente, existem cerca de 28 estados na África, excluindo a União da África do Sul, e esses países ainda não estão livres. Nada menos que nove desses estados têm uma população inferior a três milhão. Podemos acreditar seriamente que as potências coloniais fizeram com que esses países fossem independentes, estados viáveis?

                     O exemplo da América do Sul, que tem tanta riqueza, se não mais do que o norte América, e ainda permanece fraco e dependente de interesses externos, é aquele que todo africano faria bem em estudar. Os críticos da unidade africana frequentemente se referem às grandes diferenças de cultura, idioma e ideias em várias partes da África.

                 Isso é verdade, mas permanece o fato essencial de que somos todos africanos e temos um interesse comum na independência da África. As dificuldades apresentadas pelas questões de língua, cultura e diferentes sistemas políticos não são insuperáveis. Se a necessidade de união política é acordado por todos nós, então nasce a vontade de criá-lo; e onde há vontade há um caminho”.

Guardemos as devidas proporções de que as pautas e demandas e condições de possibilidades do mundo contemporâneo sejam distintas às da época de Nkrumah. Seu mais bem sucedido legado que perdura consiste na capacidade de consolidar em um território com múltiplos territórios que se sobrepõem (povos diversos, muitos deles adversários, reinos, chefes, diferentes religiosidades) o sentido de uma busca comum, e um senso de nação. Se não alcançou na dimensão continental como almejava o Pan-Africanismo, alcançou na dimensão nacional do país chamado Gana.

Hoje podemos traçar um Pan-Africanismo que não está nos limites das fronteiras do continente, mas se espalha a cada luta e hastag em que Vidas Negras Importam. Vidas Negras que são subjugadas e assassinadas pelo processo de racismo estrutural, cujo uma das causas e consequências está na pauta da manutenção da desigualdade e por sua vez da pobreza. É pelo comum da pobreza que o jovem branco das periferias por exemplo se encontrará nas lutas antirracistas entendendo-se a si mesmo como parte de quem sofre a opressão.

Vale citar que, no bojo da crítica ao estruturalismo e do pensamento filosófico que embasaria a maior parte das lutas das minorias, Deleuze (um dos críticos ao pensamento estruturalista e um dos pensadores das lutas pelas minorias) apresentava um bom exemplo do seu raciocínio sobre o conceito: “Um cavalo de lavoura possui diferentes afetos em relação a um boi. Mas por outro lado, esse mesmo cavalo de lavoura possui mais afetos em comum com um boi do que com um cavalo de corrida”.

Tentem esconder ou não, o Pobre estará no furacão de todas as lutas que os tempos de escassez trarão. Essa geografia da pobreza e da precarização nas lutas pela vida e pelo fim da desigualdade estarão na pauta, organizadas ou selvagens.

filas carro pipa india covidAumentam filas para pegar água de carro pipa na Índia.

santiago 2020Chile – Manifestações contra políticas de austeridade seguem em meio a pandemia.

RIO, ATO NEGRA LIVES MATTERAlém de enfrentar as crises da pandemia, moradores das favelas no Rio de Janeiro enfrentam o cotidiano de assassinatos e massacres por forças policiais.

 

Algumas referências interessantes:

https://brasil.elpais.com/internacional/2020-05-24/crise-impulsiona-a-retomada-dos-protestos-no-chile.html

https://www.istoedinheiro.com.br/coronavirus-o-problema-que-faltava-para-a-onda-de-calor-na-india/

https://extra.globo.com/noticias/rio/abismo-entre-ricos-pobres-se-reflete-nas-mortes-por-coronavirus-24407597.html

https://www.rfi.fr/br/fran%C3%A7a/20200321-fran%C3%A7a-confrontada-com-o-drama-dos-sem-tetos-expostos-ao-coronavirus

https://www.gazetadopovo.com.br/mundo/com-numero-crescente-de-favelas-franca-falha-ao-buscar-solucoes-ekpxg9d232uwad5rnudgknsin/

https://g1.globo.com/google/amp/sp/sao-paulo/noticia/2020/07/10/moradores-do-morumbi-pedem-permissao-a-prefeitura-de-sp-para-construcao-de-muro-na-divisa-com-futuro-parque-paraisopolis.ghtml?__twitter_impression=true

https://www.ohchr.org/EN/NewsEvents/Pages/DisplayNews.aspx?NewsID=25815&LangID=E

http://www.ihu.unisinos.br/600784-a-onu-alerta-que-a-covid-19-acelerara-a-transferencia-do-poder-economico-e-politico-para-as-elites-ricas 

http://www.fafich.ufmg.br/luarnaut/Nkrumah-I%20Speak%20of%20Freedom.pdf – Nkrumah speaks of Freedom

http://hdr.undp.org/sites/default/files/mpi_2019_publication.pdf  - Global Multidimensional Poverty index 2019

http://hdr.undp.org/sites/default/files/hdr_2019_overview_-_pt.pdf  - relatório desenvolvimento humano 2019

7 de julho de 2020

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Novos ou velhos normais

O Brasil segue sua luta diante da maior crise sanitária e humanitária dos últimos tempos. Se por um lado as camadas da sociedade tenderam a buscar saídas pelo raciocínio nós por nós, por outro lado, o padrão implementado pelo governo busca a cada novo ato ratificar a negação da doença. Esta queda de braço porém começa a dar indícios de chegar no seu limite de estafa.

O projeto do governo demonstra pequenas vitórias, que para a população são grandes derrotas:

A desestabilização popular em relação a crença na doença e aos cuidados a se tomar,

A demora na liberação dos recursos da renda mínima emergencial e os inúmeros processos de falha de implementação,

A não integração dos leitos de hospitais privados no sistema de integração do SUS,

A falta de transparência na liberação dos dados de infectados e óbitos no país,

A tentativa de acabar com a pandemia por decreto.

São estas algumas das movimentações que permitiram ao governo federal investir em seu projeto que a grosso modo se resume em entregar o povo ao revés ou sorte diante da doença. Soma a isso o retorno ao chamado Novo Normal que no Brasil seguirá desvinculado com a redução da curva das doenças. De fato o que mobiliza a ideia de novo normal não é a redução do contágio, mas sim o fato de ter ou não vaga em UTI (como se o Normal fosse estar em UTI).

O Novo Normal tem criado situações das mais escabrosas diga-se de passagem. A ode ao carro por exemplo muito bem representada no sistema drive-thruu implementado por um Shopping Center de São Paulo, que nega completamente qualquer sentido lógico do campo da arquitetura ao instaurar que o Mall se torne carroçável. Em nome de um simbolismo estranho e panfletário o shopping propõe sua abertura extremamente antieconômica. Pense que qualquer mall de shopping não é feito para tráfego de automóveis, seus pisos cerâmicos, sua estrutura fechada com ventilação mecânica recebendo doses de CO2, e o próprio gasto que envolve rodar de automóvel dentro do espaço para fazer pequenas compras. O shopping reflete bem o conceito de quem busca este Novo Normal da economia e tenta inseri-lo nos velhos normais do capital (a hegemonia do carro é um fator simbólico interessante disso).

Não obstante, cito outras situações anacrônicas se seguem, como o retorno dos jogos do Campeonato Carioca, que vem sendo apelidado de Covidão. Vale lembrar que um dos poucos hospitais de campanha que foram construídos no Rio está ao lado do Maracanã. Em um mundo onde as olimpíadas foram adiadas, o Rio deliberadamente considerou importante o retorno sem público do seu já desprestigiado Campeonato Estadual. Enfadonhas partidas se realizam em um movimento protagonizado pelo clube de maior torcida da cidade. Uma triste mancha na história deste clube que no ano anterior conseguiu retomar a simpatia de imensa parte da população mediante suas conquistas nacionais e internacionais. A tragédia se amplifica a medida em que, a cada novo jogo, remetem-se minutos de silêncio em homenagem às vítimas do COVID e manifestações de apoio às lutas antirracistas. Nisso o campeonato segue como um novo normal sem política de mitigação da pandemia, no país onde o perfil da maior parte das vítimas do COVID são justamente as vidas negras pelas quais os jogadores se manifestam.

O novo patamar da história surge com a reabertura dos bares que apesar das regras de segurança existirem, parecem não ser cumpridas. Tragicamente, as aglomerações vistas no Leblon ( um dos endereços das elites brasileiras) são reflexo de um conceito de humanidade que pouco se percebe como parte de um todo. Este mesmo tipo de aglomeração não se restringe ao Leblon. inúmeros bairros que ficam invisíveis aos olhos midiáticos, por não ter a mesma elite nela talvez, passaram todos os dias do isolamento social como se nada tivesse ocorrendo, bares, festas e ruas lotadas não são tão raras para quem mora nos subúrbios por exemplo.

As lutas concretas por sua vez também parecem abaladas, ficamos presos em frentes, tentativas de traçar planos e projetos, sem que houvesse uma saída clara ali a frente. As pautas da construção política parecem ainda viver em função de um Novo Normal que é um Velho Normal, como se muitos de nós tentássemos enquadrar nas soluções das décadas de 90 e no início dos anos 2000 a 2018 os caminhos para um porvir.

Não porém só derrota nas lutas, vemos pequenas vitórias acontecendo a cada nova rede, encontros, saídas pelas múltiplas conexões, que vão de fãs de kpop a entregadores de aplicativos, mas que dependem de que os próprios muitos movimentos e redes se tornem mais orgânicos na sociedade. A saída a meu ver vai passar pela heterogeneidade deste modo antigo de se organizar as lutas misturado com as novas formas de lutas, em um campo onde as novas formas se tornam a cada dia hegemônicas. A saída a meu ver não passaria por escolher potencializar novos atores sociais, politizar youtubers, e nem apenas o famoso retorno às bases. A saída política passará por entender que estrutura é esta que permite estes espaços de luta e atravessarmos por estes espaços onde a lógica do influencer e a lógica da construção de base consiga delinear os campos de lutas.

Neste sentido vimos nascer:

Lideranças Insurgentes e orgânicas dos lugares atuando na construção de redes de solidariedade nós por nós,

Lutas antifascistas puxadas por torcidas organizadas de futebol,

Entregadores de aplicativos organizando greve nacional contra este sistema contemporâneo de exploração do trabalho,

Digital Influenceres assumindo papel de opinião engajada e ativista,

Fãs de Kpop articulando via redes o esvaziamento de comícios,

etc.

Constituir um Brasil não polarizado vai precisar compreender os muitos Brasis que o Brasil esconde. A brasilidade das disputas de vizinhança às lutas de classe. Os Brasis que sejam capazes de levar a discussão dos bares do Leblon para além do recorte: inocentes do Leblon x bom selvagens dos subúrbios por exemplo. Precisaremos romper com os limites e os espaços de brechas onde podemos pleitear o discurso crítico assimilar as novas ferramentas, ouvir os novos atores sociais para que tracemos novas saídas. O Novo Normal não vai ser o retorno aos Velhos Normais, e tudo que parece se construir assim está sendo rapidamente visto pela sociedade como pastiche.