31 de maio de 2020

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Os Subúrbios que os Subúrbios escondem - parte 1

Uma marca de poder sobre o recorte espacial suburbano está nos processos constantes de invisibilidade que o mesmo sofre e a luta constante de busca de identidade unificada que partem de seus invisíveis moradores. Porém estes processos também perpassam a relação interna do identitarismo suburbano.

Um trabalho bem interessante para debatermos sobre tal questão vem do Leandro Clímaco que estudou, pesquisou e publicou em 2017 a ascensão de um processo identitário de suburbano a partir de um movimento de imprensa constituído pela classe abastada suburbana entre 1900 e 1920. Sobre seu resultado farei um micro recorte para expandir uma problematização aqui: a imagem estereótipo de Subúrbio branco.

O trabalho de Climaco nos apresenta como os movimentos de pessoas mais nobres da sociedade carioca a época se utilizaram da mídia para, entre outras coisas construir a valorização de uma identidade suburbana. Esta porém escondia a diversidade da construção social, e entre elas considerava algumas bandeiras que até hoje nos são caras socialmente. Entre estas vou destacar a questão racial.

Em meios a uma sociedade que constituiria seu tecido a partir do tratamento do pobre e negro como “‘classes perigosas” (como cita Climaco) o grupo mais abastado que morava nestes territórios produziram uma imprensa que visava alertar para os riscos de não se investir em melhores condições para estes territórios cujo tecido social poderia entrar em colapso se abandonado fosse. Porém, mantinham a ambiguidade e o discurso das classes perigosas. Hoje este processo não é muito diferente das páginas de notícias de bairros que vivem basicamente de quatro pautas: compra-venda, achados e perdidos, cobrança de melhorias do poder público, denuncias dos perigos vindos das “classes perigosas”.

O desenho de unidade suburbana que Climaco expõe parece atravessar décadas e séculos deixando rastros e resquícios até nossos dias atuais. É comum vermos de forma massificada a imagem de suburbano sendo retratada de maneira jocosa: o personagem escandaloso, meio desajustado das normas sociais, sem etiqueta (mesmo que isso tudo sejam ferramentas de controle social). Vale lembrar que o padrão de Suburbs que escalaria a sociedade a partir da classe média americana fordista que se compõem pela família do comercial de margarina, Homem-Mulher-Filhos-Cachorro que terá uma casa um carro e eletrodomésticos.

Nossos subúrbios pro sua vez ficam no ambiguidade. Não são referenciados por estes padrões, mas também retratam e mantém no imaginário popular um recorte que esconde a maior parte de sua população: Os negros e pobres. Quando se assume pelo estereótipo que consiste na casinha neocolonial e na família portuguesa esconde de si mesmo o seu chão.

Foto Poder — Carlos Vergara

Nossa cultura, podemos citar por exemplo, a festa da Penha, o Samba, o Funk, o choro, a arte plástica, a literatura é permeada pelo protagonismo de nossa gente e nosso chão. Mas esta gente que entre 1900 e 1920 e até hoje será retratada como classe perigosa será embranquecida pelos processos de identitarismo ou será escondida por trás da branquitude S.A. que hegemoniza racialmente os espaços.

Manguinhos-Casas suburbanas fonte: CenaRios

Ainda hoje esse resquício de visão de mundo permanece no imaginário que molda a busca de uma identidade suburbana para muitos. Ficar preso neste processo é nefasto pois recorta as lutas que seriam as nossas. O embranquecimento do discurso suburbano alimenta brutalmente o racismo neste território. Não é incomum vermos relações de classe e renda nos bairros pobres da cidade e Região Metropolitana do Rio, onde inúmeros negros terão condições econômicas melhores que seus vizinhos brancos, ainda assim a pele deles refletirá a alcunha que demarca o Brasil — “A classe perigosa”.

Estas são muralhas territoriais que precisam ser rompidas. É praticamente impossível se pensar em lutas identitárias suburbanas sem traçar as contradições e os conflitos raciais que compõem este tecido social chamado Brasil. Classes Perigosas podem e devem ser lidas como: Aqueles que podem ameaçar diretamente um processo de controle e hegemonia destas tentativas de unidade identitária em torno de um projeto já estabelecido de poder, que no Brasil é classista e racista.

Meme retirado de: O Brasil que deu Certo

Recomendamos aqui o trabalho do Leandro Clímaco: Jornalismo como missão: Militância e Imprensa nos Subúrbios Cariocas: 1900–1920. link: https://www.historia.uff.br/stricto/td/1952.pdf

30 de maio de 2020

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Espaços Insurgentes

Mineápolis-Brasil pequena cartografia de suas lutas urbanas.

Já algum tempo compreendi que não devemos pensar apenas em uma vida pós pandemia, mas na vida dentro da pandemia. Enquanto o campo da arquitetura e urbanismo faz estudos e prospecções, ensaios teóricos e demais produções, a relação crua da sociedade se expõe.

Se no início da pandemia observávamos para exemplos vindos de territórios de controle, debatíamos táticas de isolamento espacial, saúde coletiva entre outros, hoje temos um cenário distinto que se apresenta. Há algo em comum entre Minnesota, Paraisópolis, Amazonas e Rio de Janeiro neste momento, assim como há um fio que conecta . As redes de poder e controle revelam de forma crua como a morte é um instrumento de controle do sistema. George Floyd e João Pedro são vítimas de um projeto de cidades e territórios onde se banaliza quem vai morrer.

Sobre o Brasil, este projeto racista pode ser visto em inúmeros exemplos, mas trarei especificamente os fatos recentes. Qual o argumento justifica as recentes mortes de jovens em favelas durante processos de entrega de cestas básicas? Nada que vá além da demonstração de poder e controle.

O plano Brasil de enfrentamento ao COVID foi de combate aos seus cidadãos mais segregados historicamente. Sem planejamento de tratamento, sem a distribuição da renda básica universal e como vimos na reunião ministerial, com uma proposta de partilha do espólio-brasil entre os seus o país foi entregue a própria sorte na luta pela vida.

Diante de tal projeto, o povo ousou tentar sobreviver, fortalecendo a historicidade das redes nós por nós de ajuda mútua. Não é preciso olhar pra copo de leite do tal Capeton pra falar em simbolismos de fascismos, os assassinatos em meio a doações já demonstram isso. Assim como os caminhos que fazem com que as pessoas tenham de escolher entre morrer de fome ou Corona.

Voltemos os olhos para Mineápolis e seus ensinamentos. Pensando neste momento sobre o urbano e a arquitetura, uma vida bastou para que a cidade se pusesse em chamas. Isso é revelador sobre o que importa na cidade: o cidadão. O povo de Minneapolis, em um ato de justiça e revolta, remodela as espacialidades da mesma como um documento que rasga o sistema urbano racista e traz o território de volta aos seus. Vale lembrar que o povo norte-americano também enfrenta o COVID de forma estranha devido as escolhas de seu presidente. Ainda assim, Minnesota neste momento não recua da incessante luta pelo direito a vida.

Mineápolis é o ponto de partida de uma nova cartografia insurgente que revela a forma social com a qual se constituiu as Américas. Este imenso território que exterminou e escravizou seus povos originários, e outros inúmeros povos através de um modelo racista de constituição de suas nações. O sistema racista que organiza estes territórios passa por esta máquina de captura de saberes, vivencias e trabalho, e quando não consegue mais capturar elimina.

Neste mesmo ano de 2020, antes da doença chegar ao Brasil, a Escola de Samba Acadêmicos da Rocinha apresentava estes versos na passarela do samba:

“Chora Maria! Que a água do oceano sabe o gosto da lágrima que escorre em seu rosto. E os santos que aportam no cais da Bahia protegem quem já foi mercadoria”

Maria Conga Unidos da Rocinha 2020

Nossas cidades são estas escrituras de espacialidades que consideravam a maior parte de seus usuários como mercadorias e não como cidadãos. Esta é a construção social que funda nossa produção urbana.

Uma crítica progressista que surge em meio a isso: o Brasil precisa aprender com Mineápolis. Este a meu ver é um pouco do misto de nosso senso de emergência e justiça com um olhar ainda romantizado de que estamos presos em uma lógica de cidadão cordial. Na real, há uma diferença importante a destacar, as forças de controle do estado no caso do Brasil atuam de “maneira enérgica”, termo que elas usam para explicar a opinião pública como passam por cima dos direitos humanos conquistados a duras penas para efetivar atos de controle social.

Quem não se lembra das operações no Complexo do Alemão por volta de 2010, 2011 (épocas de governo Cabral) que unificou polícia militar, civil, exército e todas as mídias? Quem não se lembra do Massacre de El Dorado, ou das rebeliões prisionais no Norte do país? Quantos João ou George estavam nestes locais. Os espaços brasileiros tem este recorte, onde a questão da mobilidade urbana cruza com transportes que podem ser parados e revistados em dias de verão a caminho da praia. Dois jovens em uma moto e demarcações indígenas são escalas de uma mesma agenda espacial e territorial. Se a espaço preto e ameríndio não pode ser remodelado, ele é condenado e criminalizado seja por ações como quebrar um terreiro ou matar na favela: seja de fome de falta dágua ou de tiro.

Complexo do Alemão 2010

Não obstante, o que chamamos de cordialidade do cidadão brasileiro possivelmente é hoje mais fruto do excesso de força implementada pelo sistema de controle do que propriamente passividade do cidadão. Soma-se a isso o fato de que muitas vezes invisibilizamos ou não nos sentimos responsáveis (enquanto sociedade civil) por mortes que envolvem o recorte territorial e racial.

Em meio as recentes cartografias insurgentes vejo por exemplo nascer no Brasil dois movimentos, o primeiro: a imensa rede de redes de ajuda mútua que caminham ainda que sejam atravessadas por estes assassinatos. Segundo: alguns levantes insurgentes de manifestação de rua antifascistas, ainda que expondo-se aos riscos da doença.

Nossa encruzilhada atual parece estar neste processo. Por um lado, o governo nacional demonstra todo interesse em caminhar para a ruptura democrática através da força militar. Por outro lado, o território brasileiro paulatinamente tenta se auto-organizar através das redes formadas entre seus vulneráveis. Em uma agenda de lutas que é local e também global. Isso torna Mineápolis mais próximo de nós do que imaginamos.

Há nestas redes um caráter plural e difuso, mil facetas atuando, buscando suas entradas e seus caminhos. Muito destas redes sempre aconteceram, porém agora tem ganhado visibilidade, outros elos de redes começam a se formar nestes movimentos de emergência. Em maioria porém, todas parecem apresentar uma tendencia comum: não aceitar a ruptura dos marcos democráticos pela força. Esta tendencia comum pode ser a saída da atual situação do país? quero crer que sim.

O Haiti é aqui, Mineápolis é aqui, Maria Conga na Rocinha é aqui. O espaço é forma e conteúdo (já dizia Milton Santos). Quando a forma não comporta, não liberta ou emancipa o conteúdo, o conteúdo pode e deve modificar a forma. Assim que edificações são demolidas, caem, perdem o sentido de ser. Mineápolis em chamas é o conteúdo remodelando a forma.

Mineápolis 2020

16 de maio de 2020

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Um das saídas da pandemia passa pelo espaço

O Lockdown e o isolamento espacial são o grande tema do debate. Hoje podemos considerar como uma das mais importantes ferramentas para tentarmos impedir que a cepa que causa o COVID19 tenha mobilidade através de seus vetores que somos nós, reduzindo assim a pandemia.

É possível que vivamos muito tempo com este vírus circulando por ae, sem vacina ou profilaxia eficiente, estamos pensando em vida pós-pandemia porque prevemos um futuro pós-pandemico, mas esse futuro não é tão previsível quanto parece.

Neste sentido, cabe a quem trabalha com o espaço, lugar e território uma dura missão: cosntruir um plano de isolamento da cepa. Assim como foi com a MERS ou outras SARS que hoje se encontram retidas em alguns locais do planeta.

Infelizmente, movido por uma série de ajustes desajustados do governo federal do Brasil, caminhamos para ser um dos territórios do planeta que concentrará esta doença. Sim, esta é uma realidade que está diante de nós e que devemos enfrentar sabendo que pode ser algo de médio e longo prazo.

A notícia recente de que a FIOCRUZ tem conseguido aumentar significativamente a produção de testes pode ser um grande alento, pode nos permitir trabalhar dentro de um raciocínio de prevenção a partir dos testados como fez a Coreia do Sul. Nossa dificuldade porém está em confrontarmos esta realidade com o tamanho do território nacional e suas muitas relações discrepantes, desigualdade social, disputas, lutas urbanas e rurais, fronteiras e relações continentais e somar a isso a luta anti-científica do governo federal.

Podemos não conseguir encontrar a cura ou erradicar a COVID, mas podemos reduzir seu círculo de transmissibilidade a poucos espaços. Talvez concentrá-la em uma cidade, estado ou região, o que desafogaria o sistema global na luta contra a mesma. Por isso as políticas de isolamento espacial são tão importantes neste momento.