13 de fevereiro de 2020

, , , ,

BIM e um olhar sobre o trabalho e o capital


Uma das grandes mudanças profissionais no campo dos empreendimentos construtivos (recorte da arquitetura) surge com a chegada do pensamento e dos instrumentos de BIM, que começam a emplacar no mercado profissional sobre o CAD. A princípio vamos comentar primeiramente sobre o que isso significa. A grosso modo podemos dizer que: o conceito CAD (computer aided design ou traduzindo desenho assistido por computador) é uma complexa prancheta de Desenho, com inúmeras ferramentas e scripts que facilitam em muito a automação de certos serviços.

O impacto do CAD no modo de trabalho em projeto fora impressionante, porém não muito discrepante da forma atual de se trabalhar por ser basicamente um avanço tecnológico sobre um pensamento de projetar onde leia-se o pensamento cartesiano de desenho. Nos dias de hoje, vivenciamos uma nova mudança para o modo de operar, o BIM (Building Information Model ou modelagem de informação da Construção) diferente do CAD, o que se modifica é a forma de operação sobre o projeto, pensando-o não mais a partir da representação cartesiana e sim da modelagem construída. Vale lembrar que em muitas áreas da engenharia pesada já se projetava utilizando ferramentas paramétricas de modelagem estilo BIM (guarde este registro).  Assim sendo, o que estamos falando aqui não são apenas softwares, mas de modos de produção do trabalho.

Estes modos de trabalho foram fortemente hegemonizados por uma grande corporação guarda-chuva de softwares do tipo, não precisamos escrever nomes aqui, pois os nomes vêm à cabeça na primeira leitura. Mas como ocorreu este monopólio? Um caminho muito simples. A épocas em que os hardwares dos computadores pessoais eram mais potentes e comuns que os grandes bancos e sistemas de nuvens, coube a corporação simplesmente ser proprietária de uma sigla de três letras, que poucas pessoas se dão conta: o famoso .DWG, esta sigla atua como uma chave de criptografia que permite a leitura com exclusividade para seus softwares, cuja pirataria era combatida porém não com tanto afinco a ponto de tornar-se o programa comum no cotidiano profissional, passo importante para garantir a hegemonia de um sistema proprietário. 

Os modelos CAD acabaram com as pranchetas dos escritórios, porém também se adequou relativamente bem a um sistema de trabalho flexibilizado e que permitisse com tranquilidade terceirizações, parcerias de pessoas jurídicas com pessoas jurídicas e outrem. No recorte do arquiteto, permitiu mais velocidade, em especial ao arquiteto de médio porte atuar. Enquanto por outro lado, os grandes projetos industriais seguiam caminhando e se estruturando em ferramentas mais robustas e diferenciadas, como as ferramentas AVEVA que também condiziam com um modelo de organização do trabalho que permitia e necessita desta robustez.  Não precisamos nem explanar mais o quanto o CAD fortaleceu o modus operandi do arquiteto alienado ao canteiro de obras.

O BIM emplaca na arquitetura e construção civil em um outro cenário. Se nos anos noventa, e inicio dos anos 2000 disputávamos o espaço da internet como território livre, onde a cópia de arquivos, o peer-to-peer, eram grandes instrumentos de disseminação de material e dados enquanto buscávamos defender os softwares livres ou não proprietários, na última década para cá, esta disputa selou. As grandes indústrias do meio imaterial como a fonográfica e a de softwares se reorganizaram e consolidaram um novo modelo de capital. Quase ninguém mais compartilha música via torrent, ouvimos via spotfy. Assim também os programas piratas começaram a decair, e substitui-se o modelo de instalação com chave própria (muitas vezes pirateada para facilitar a hegemonia) por um modelo de aluguel de serviço. É nesta conjuntura que o BIM chega ao mercado com seu produto mais pop entre os arquitetos brasileiros (para não citar nomes vou inventar um) o REVIDE.

Sigamos:
O “revide” surge como uma proposta inovadora para nós arquitetos, trocar a prancheta eletrônica pelo canteiro de obras simulado, algo que o sistema PDMS da AVEVA já fazia a bastante tempo na construção pesada industrial por exemplo (local onde a flexibilização do pequeno escritório com parceiros distantes não favorece o empreendimento). Além disso, chega apoiado e duas grandes bases:
1 – A corporação que o lança já está consolidada e hegemônica no mercado nacional,
2- As novas formas de estrutura informacional mundial facilitam o sistema proprietário como o revide adentrar o mercado.

O revide é vendido nos anos atuais como o cogumelo do sol era vendido nas décadas de 80 e 90, quase que a solução para todos os problemas modernos, e como se para muitos não existisse outra ferramenta hábil a realizar o tão sonhado projeto. Ainda estamos engatinhando na transição. Em parte, os antigos (me incluo) sofrendo para fazer a mudança de raciocínio de projetar por desenho para projetar por modelagem construtiva, (o que revela muito o resultado da impotência de anos dos profissionais afastados dos canteiros de obras). Por outro lado, os mais jovens que ainda não conseguem compreender a ferramenta como um elo do novo modo de produção do capital.

O sistema “revide” porém, obriga certa robustez, seja de hardware seja de equipe de trabalho profissional na compatibilização e projeto completo em si. No atual momento, o que está dado poderá criar uma ruptura grande no campo profissional. Onde, ou se organiza os trabalhadores de forma quase industrial em torno de um projeto, garantindo um grande centro de banco de dados de BIM e softwares potentes contratando os profissionais a trabalhar em equipe dedicada, ou teremos cada vez mais organizações de trabalho altamente precarizados com complicados problemas de projeto e construção.

Há possibilidades deste custo cair para o consumidos final? creio que sim, visto que um dos maiores bens de valor atuais são os dados e softwares paramétricos tem como foco o alimento de bancos de dados, estas grandes corporações podem facilmente abrir verdadeiros bancos de dados, com lógica econômica de bancos financeiros, troca de dados por crédito, depósito de dados em nuvem, você produzir dados e alimentar a empresa com dados (como as redes sociais já fazem). Talvez não haja muito interesse neste momento, mas quem sabe no porvir? 

A problemática, porém, não está na ferramenta, seria ludita pensar nisso. A questão está na atual conjuntura de construção do capital e sua interface com nosso meio profissional. Meio este cuja nova legislação por exemplo enfraquece o celetista em nome da pessoa jurídica (seja PJ, EIRELI, MEI, etc.) o que favorece o retorno da exploração dos mesmos a um centro de trabalho com a flexibilização completa dos direitos institucionalizando-se na narrativa da terceirização.

O que nos coloca no jogo das novas formas de exploração e nos capacita a lutar é compreender em que meio estamos pisando para saber onde e como e a que resistir. É sabermos que ferramentas são só ferramentas, para não cairmos no ufanismo da tecnologia pela tecnologia ou no ludismo de que a tecnologia está matando nossos empregos. Uma vez ouvi um comentário ótimo, piada de um grande camarada: “enquanto os americanos projetavam uma caneta onde a tinta poderia escrever até na órbita da terra, os Russos mandaram o astronauta levando um lápis”. A piada não é sobre adequação ou resiliência, é sobre inovação e entendimento de onde estamos.

O BIM chega a nós arquitetos em um momento de extrema fragilidade profissional no país e no mundo. Para nós em especial, onde poucos conhecem o canteiro, o cheiro de cimento e madeira cortada, lidar com a modelagem do que será construído será extenuante, para outros que habitam o canteiro e muitas vezes resolvem um detalhe de projeto riscando tijolo no chão talvez não apanhem tanto. O que precisamos estar preparados são para as possíveis formas de apropriação e exploração do nosso trabalho e nossa vida.


Parasita e distopias de um mundo presente

Muitas são as entradas possíveis para debater sobre um filme da densidade do principal vencedor do Oscar. O que buscarei aqui são reflexões que transversam e flertam com o filme, e não necessariamente sobre o filme. O primeiro marco que sinto reside no universo distópico de Parasita.

A distopia está no tempo presente.

A temporalidade trazida retrata um mundo contemporâneo cercado de suas mazelas e disparidades sociais. Mundo este no qual a arquitetura atua como paisagem e personagem coadjuvante. Mas para não entregar o filme, não falemos das arquitetura do mesmo, porém de exemplos paralelos que nos interessam. A tríade: condomínio-via expressa-shopping center que se reflete no aeroporto de Koolhaas, aqueles espaços estéreis de múltiplos seres, mas que escondem em seus subterrâneos e corredores técnicos a vivencia do trabalhador que sustenta o funcionamento do espaço. A distopia de parasita está ali dada. 

A representação.

Ao abdicar de suas verdades em busca de viver a partir da representação, os pobres se posicionam em uma auto-alienação cujo premio são algumas migalhas de conforto. A representação porém não salva o pobre de sua condição real, não o insere na outra camada social. O pobre alcança no máximo uma familiaridade que é restrita aos serviçais mais próximos a casa-grande. 

A idolatria ao arquiteto, ou ao dono da casa grande não insere o ser real do pobre no círculo privilegiado, no máximo, o inserido é o personagem representado. Personagem este que diante da catástrofe entra em pausa para que a verdade da vida real assuma seu lugar em meio a todas as perdas. O dualismo que tensiona entre o personagem (representação) e o ser real tem sua ruptura em um desfecho de explosão visceral.

A consciência de classe.

A busca incessante que temos pela construção da consciência de classe também tem sua crítica marcada no filme, onde a diferença de classe se torna clara. Porém a diferença que leva ao desfecho não cria a visão de mundo através de um processo -digamos- civilizatório e cartesiano de construção desta consciência. A relação de classe é sentida na pele, expressada por instintos básicos dos sentidos humanos. Sentidos estes que se elevam diante da pressão envolta na desumanidade dada aos que levam a vida em um porão. O pobre é elogiado por conseguir se manter no seu lugar, no seu espaço, porém mesmo que conscientemente se mantenha, sua carne incomoda, vaza para o espaço que não lhe convém ocupar pois pertence ao hospedeiro.

O filme apresenta com força o que é a dificuldade exponencial do pobre em sobreviver diante da facilidade que eventos trágicos tem de tirar suas poucas posses. A barraca de brinquedo da criança que resiste diante do mesmo cataclismo que torna inúmeros moradores da cidade flagelados é um recorte belíssimo dessa narrativa. Ao pobre resta ser tático para se manter sobrevivendo enquanto a vida e liberdade pertence ao seu hospedeiro.

Parasita fala de classes, as lutas e diálogos porém são retratadas através das vísceras. O olhar sobre esta relação de classes e a obra me remete a uma frase de Bruno Latour “É preciso combater a ideia de que existe por aí um dicionário do qual todas as palavras dos atores possam ser traduzidas nos poucos verbetes do léxico social”. Não há um plano que dê certo.

A barraca, a casa, o porão, as ruas e escadas, o sol e a sombra, cada detalhe retrata a proximidade deste mundo distópico ante da nossa realidade. Uma distopia que passa diretamente sobre o urbano e a arquitetura e que me fazem questionar: como é o mundo de parasita nos corredores técnicos dos shopping centers, como é o mundo de parasita no universo dos moradores sem teto e flagelados que dormem em nossas esquinas, nos aeroportos e outros espaços similares. Se antes estes eram invisíveis simbolicamente e politicamente, as novas cidades estão tentando torná-los invisíveis também espacialmente, em uma vida de labor em entrepisos, corredores de acesso e similares. 

Uma coisa porém me assustou em termos de arquitetura. Diferente do Brasil, onde até pouquíssimo tempo toda residencia projetada possuía um caminho separado de entrada das empregadas (as mesmas que não devem ir a Disney). Em Parasita, os pobres podem acessar a casa grande pela entrada principal.

É possível que nossa distopia cotidiana brasileira esteja anos luz a frente na desumanidade, porém é possível que estejamos domesticados, tão domesticados quanto quem já assimilou com normalidade comprar água da Nestlé para beber ou espera em um porão sem sol o momento ideal de sair novamente pra vida. 


A questão é esta: como podemos nos reagregar em meio a novo tempoo presente?