25 de março de 2020

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Não se faz copa com hospitais

É isso que temos a dizer. Antes de mais nada é preciso que todos nós tenhamos a plena compreensão do que estamos vivendo. A história do mundo é rasgada de tempos em tempos por um movimento pandêmico.
Optei por não ler filósofos neste momento, não me senti a vontade (neste texto) em teorizar sobre um vírus (cuja formação é mais simples que uma molécula) produzindo nele isomorfismo ou múltiplas teorias sociológicas. Se tem algo que concordo com Lula nesta hora é sua frase: “primeiro vamos salvar as vidas depois a economia”, que aponta ser a principio a postura de Mandetta, e WW sobre essa situação. Preferi me ater de leve a dados duros, e ao campo que importa, a saúde coletiva e o urbanismo.
Talvez, desde a gripe espanhola não tenhamos vivido algo deste nível. Por sorte agora, temos mais sincronicidade de informações. Vivemos o fruto do desleixo, nos últimos 100 anos não construímos soluções para resolver a equidade social, ao contrário, utilizamos toda a pauta gerada nas pós-pandemias para emplacar modelos de segregação urbana.
Porém, se nestes anos não fizemos, em anos recentes também nada foi resolvido. Hoje estamos aplaudindo nomes espúrios da política pois vivemos um combate transversal, a luta entre a ciencia e o obscurantismo, entre os que compreenderam que tem que ouvir a voz da OMS, da FIOCRUZ, dos PESQUISADORES SEM BOLSA no lugar da insanidade de um energumeno que por azar do destino está na presidência. Porém falamos de gente hoje que até ontem estava batendo palmas com este presidente, e que até ontem estava pouco se lixando para resolver o problema de segregação. Se hoje há foco de alguns destes, é porque vírus não pensa, não escolhe por etnia, gênero, classe, o vírus voa e chega lá tanto em mim quanto nos que menos tem e até neles varre do morador de rua ao dono do Santander. Coitados dos que tentarem se capitalizar politicamente com isso, coitados dos que não enxergarem a necessidade humanitária que estamos vivendo.
Se há alguém que tem lutado com valor esta luta no Brasil é o SUS. Sempre escorraçado pela opinião pública (leia todas as mídias) e sempre sucateado por todos estes governos. 100 anos amigos, uns quase 500 que não temos saneamento direito, e nos últimos anos continuamos a míngua. Vivemos uma década de luxo, ao que parecia, tivemos Copa do Mundo, Olimpíadas mil investimentos eles diziam. Fizemos teleféricos e não levamos água e esgoto, hoje não temos nem teleférico e nem água e esgoto, hoje temos roda gigante, mas provavelmente é porque não se faz Roda gigante com hospitais.
Muitos tentam entender como os de hoje entraram onde entraram, mas a resposta está em todos os de trás. Em um dado momento não era simples de entender como aqueles que juraram fazer por nós, no Rio de Janeiro pelo menos, escolheram Copa do Mundo ao invés de hospitais. Assim como o teleférico, não temos mais aquele velho e belo Maracanã do povo e nem hospitais, só roda gigante.
No país onde roda gigante é prioridade, quem está fazendo a roda de verdade girar para enfrentar o COVID-19 é o SUS e toda a sua base de profissionais atuantes!
Ao menos fico feliz que tenhamos pesquisadores sem bolsa, médicos e enfermeiros com salários defasados, e inúmeros profissionais que antes de mais nada tem humanidade. Pois são eles que estão pautando os acertos que podem nos salvar. São eles que estão dando os instrumentos políticos para os políticos tradicionais tentarem resolver no desespero. O SUS é robusto para enfrentar a pandemia! isso é frase vinda do próprio governo, e tem verdade nesta frase. Verdade que o grande lobby da saúde privada não quer e nunca quis que fosse ouvida.
WW, Maias, Dórias, Mandettas e cia estão sendo coerentes em não se entregar ao obscurantismo tacanho do presidente, mas serão pequenos ao tentar capturar politicamente. O preço do sucateamento do SUS também passa pela conta deles e infelizmente (para nós) este preço está sendo cobrado agora e tudo indica que será alto.

24 de março de 2020

A cidade e a pandemia parte 3 - reflexões rápidas sobre o mundo do trabalho.

A pandemia talvez seja o primeiro grande enfrentamento deste novo tipo de trabalhador que se torna hegemônico na sociedade brasileira, em especial nas grandes cidades: O autônomo precário. Este trabalhador que vive do bico, do imediato, que não tem patrão nenhum e muitos patrões ao mesmo tempo e que empurra todo o sistema de trabalho para um modelo de negócio similar. O sonho do grande capital é ver todo trabalhador de carteira assinada “sendo seu próprio patrão”, assinando sua pessoa jurídica seja em que caráter for. 

Nada é mais parasita no mundo contemporâneo do que empresas como UBER, CABIFY e similares, onde você “é o patrão”, o dono do carro, quem assume todos os riscos para que a empresa gere lucros exorbitantes. Também nada é mais ilusório do que o trabalhador que é obrigado a usar um CNPJ seja de EIRELI, ME, MEI para se manter subempregado em algum sistema do capital. Não! não culpemos o trabalhador, que na maioria das vezes não tem escolha, ou se sentem bem fazendo algo (muitas vezes é um trabalho que gostam e tem que se virar). 

A defesa do precário parece bonita na teoria, mas é um tiro de misericórdia. Em nome das narrativas do Do it Yourself, faça sua agenda, seja você o dono do seu tempo, seu tempo e seu dinheiro se restringem, não duram para o fim de semana, para as férias, para a pausa da vida, e quiçá para uma crise de saúde do tamanho da que enfrentamos.

Cortando de forma transversal o mundo, o vírus colocou as estruturas capitalistas em um cheque, e diante do cheque obrigou o sistema a tentativas novas de organização com a ruptura do efeito de inércia. O momento pesou na mão e o governo escolheu seu lado, o mesmo lado que lhe pôs: um grupo do grande capital, defensor de estado mínimo, escola austríaca, anti-científico e religioso. No que tange a estrutura superior parece haver um racha, em especial de ordem científica. Se por um lado alguns de seus ministros trabalham firme no combate a crise de saúde que está dada, por outro lado parte se foca em tentar salvaguardar a economia para os que lhes interessam. 

Neste sentido, a escolha de Guedes varre a população para frente da pandemia. Na necessidade de salvar os seus, leia-se claramente — OS SEUS- e não a economia, Guedes propõe a chave para a maior derrota humanitária deste país. Isso não significa que antes era tudo perfeito, faz anos que as políticas de seguridade social do Brasil foram sendo achatadas, o Sistema de Saúde Pública que no papel é de ponta só sobrevive firme pelo esforço de muitos que trabalham em situação precária lá dentro, mas isso não deve ser motivo para amenizar Guedes, afinal a chave da economia está com ele. 

Nossa vida real, para longe dos teóricos e economistas austríacos ou de Harvard ou da FGV é assim, vivemos no dia a dia da escassez. Temos escassez de segurança social, de saúde pública de escola de qualidade e que pesado,…até de saneamento. Impressiona ainda termos problemas de saneamento visto que as tecnologias principais desta ciência existem desde antes de tempos babilônicos. Sim meus amigos, o povo de Nabucodonosor tinha mais rede de água e esgoto que os moradores de Santa Cruz.

Atualmente, um dos mais importantes campos de luta do trabalhador está no território. Hoje, diante da pandemia o território está na luta para viver. E na crise está dado a importância do cidadão. O povo tem que escolher: ou para e faz quarentena ou corre o risco de pegar uma doença sem cura e que mata. Diante de tal olhar, o mais prudente de qualquer governante seria delinear ações bruscas mas efetivas que: 


1- garantam o minimo de dignidade para cada cidadão sobreviver e enfrentar a pandemia.

2- garantam a estratégia de combate a doença efetiva, clara e universal. 

A questão dada é, como pensar isso diante do olhar obtuso de Paulo Guedes e seu chefe para quem estamos todos em histeria?

Não perceber que o capital do mundo parou para que a humanidade não morra é olhar mais raso que estes senhores poderiam ter. E neste momento optar por medidas de austeridade é assinar o atestado de genocídio do povo. Esta é a burrice e visão tacanha de quem não percebe que a economia do Brasil gira em torno da força massificada de seu povo precário. Pois o precário não abrange só o pobre (que as pessoas tem em mente estereotipadas), abrange também essa imensa gleba de brasileiros com formação superior, ou os chamado de classe média que vive de trabalhos sazonais, entre outros. 

Sem ações que possibilitem ao trabalhador o mínimo de segurança social e estabilidade, o risco Brasil será o risco de vitória da Pandemia. Pois: ou teremos um caminho de medo de ficar em casa e perder o emprego, ou um caminho de desespero dos que ficarão desabastecidos do sistema. Dar margem a esse risco é nefasto e burro, nefasto pois é assinar o atestado de aumento de violência e morte dos mais pobres. Burro pois inviabilizará a necessidade de cumprir a risca os protocolos de saúde que podem garantir a vida de todos. A pequenez do presidente e de seu ministro da economia fica clara a cada novo ato, palavra, discurso e resolução.

O mínimo que deveria ser feito neste momento é a aplicação da Renda Mínima Universal e somando a isso o fortalecimento de recursos para o Sistema Único de Saúde. Quanto mais recursos investirmos agora em tratamento via reforço da estrutura de redes hospitalares, e em Pesquisa e Desenvolvimento para que nossos cientistas consigam avançar nas colaborações internacionais que estão buscando arduamente a cura para a doença, mais rápido poderemos sair desta. 

Os que arrocharam, sucatearam transformaram a Saúde Pública em esquemas para vender OSs por aí agora vão sentir o tamanho do estrago que fizeram. Talvez não se criem politicamente mais, pena que pode ser as custas de perda de vida de inúmeros brasileiros que nada tem a ver com seus lobbys. 

Vamos pagar caro pelo sucateamento de anos de instituições públicas, pagar caro pelos séculos de falta de saneamento para imensa parte da população, e pagar caro pelas escolhas burras deste presidente e seu banqueiro. 

Mas é possível que este novo corpo de trabalhador, que se organiza por fronteiras diversas e que transversa a maioria das instituições (e por isso muitas das vezes as instituições não alcançam ou entendem como certos movimentos acontecem) experimente em muitíssimo breve um ciclo de greves selvagens, as primeiras após o decrepto e bizarro dia 15, o famoso dia do foda-se. 

Mas quem somos os que vamos pagar caro?
Sou Ninguém! Tu és Quem?
És tu — Ninguém — também?
Então nós somos um par!

A crise agora é humanitária, e a luta é para que todos tenhamos vida.

E na boa, uma resposta ao dia do foda-se, parafraseando o único presidente que respeito, vivido das e nas ruas e falecido no SUS:

QUER UMA PALAVRA DE CONSOLO?
FODA-SE O BOLSONARO! 

QUEM MANDA NESSA PORRA AGORA É O SUS!


15 de março de 2020

Pandemia e cidade parte 2 - pitacos para organização de territórios vulneráveis

Recentemente fora publicado um texto importantíssimo do infectologista Valcler Rangel chamado: E quando o coronavírus chegar às favelas? (leia aqui> https://projetocolabora.com.br/ods3/e-quando-o-coronavirus-chegar-nas-favelas/) lançado na revista colabora nos alertou para o imenso eixo de nosso problema em grandes cidades brasileiras e latinas. Como lidar com equidade social diante de uma pandemia onde o principal instrumento de proteção é evitar conglomerações porém onde a maior parte das moradias pobres são justamente conglomerações

Bem, pensando nisso comecei a estudar algo para dar alguns pitacos e talvez um tiro inicial de discussões, entenda, pitacos significam que não são caminhos prontos ou prefeitos, mas sim provocações para que iniciemos a construção de uma agenda de ações urbanísticas para tal.

Nosso maior problema em termos de Política Urbana nunca resolvido está no acesso de direito a cidade a moradores periféricos, em nosso caso mais proeminente os das favelas. São territórios cujos problemas de salubridade ocorrem com frequência e onde o poder público sempre teve baixo interesse em resolver. Hoje, estamos em uma crise emergencial que precisa de respostas emergenciais. Temo que as respostas que venham por parte dos poderes do estado sejam das piores, mantendo a lógica de aproximação e usurpação constante destes poderes que por exemplo não conseguiram em épocas de vacas gordas resolver a questão de saneamento nestes territórios.

É neste sentido que traço um pitaco-proposição de que precisamos reforçar o nós por nós para encontrar ferramentas que nos capacitem a minimamente proteger os nossos. Entre essas pontuo como necessário:

1- Fortalecer a organização popular pelas instâncias existentes nos territórios, colocando como pauta primordial a segurança de saúde diante da pandemia, isto é: buscar em todas as comissões, comitês, coletivos, associações de moradores, grupos organizados destes territórios elaborarem em rede a pauta comum de elucidação prevenção e articulação de ações conexas a garantia da salubridade. Ter uma espécie de comitê de contingenciamento ou rede que seja do lugar e que articule 24h a relação com os sistemas de controle de endemias do estado e a população do lugar.

2- Fortalecer o pensamento do espaço através do coletivo. O contingenciamento pode propor ações e medidas drásticas, muitas das vezes autoritárias. Diante disso é preciso fortalecer no território os elos em que apesar das mil divergências, estamos enfrentando um inimigo comum que afetará a todos que estão conglomerados.

3- Instalado isso, pode-se pensar com mais tranquilidade na reorganização popular dos mais vulneráveis de forma que por um período de contingenciamento consigamos estabelecer que estes estejam em locais mais seguros e com mais rápido acesso dos Agentes de Saúde Público. Para tal, é preciso um trabalho constante de fortalecimento dos Elos Comunitários, de forma que possamos negociar uma mega rede de ajuda mútua inter-familiar.
O que quero dizer com isso, se sua habitação é vulnerável, ou possui um morador com suspeita de ser vetor da doença por um lado e um que esteja dentro do fator de risco por outro, Podemos negociar (dentro destas instâncias populares) que no prazo de recolhimento, o morador que está mais enquadrado no fator de risco e por sua vez deva ser protegido, pode ser “adotado” por um vizinho cuja residência favoreça mais a salubridade do mesmo. O Comitê pode mapear moradores voluntários que se interessem em ceder espaços salubres para pessoas vulneráveis e ter um cadastro de uso.

4- Precisamos adotar medidas drásticas de mercado e estado, garantir o uso de espaços salubres próximos como local de reclusão, pensar por exemplo no uso de hotéis próximos que poderiam ceder quartos a troca de isenção de imposto e principalmente: cobrar a função social das inúmeras propriedades que estão fechadas ou vazias pela cidade. Cobrando também que se cumpra a função social do arquiteto e urbanista no direito de construção de espaços salubres e com garantia a todos.

Lembrando aos mercadólatras do não existe almoço grátis que: em momentos de crise como a instaurada, lucrar com o almoço também é assinar o atestado de genocídio do povo. O primeiro passo é romper com a cultura instaurada no cotidiano individualista de que o problema das condições sociais de uma pessoa é problema dela individual e não devemos nos meter. Não! O problema das condições sociais de uma pessoa é um problema da sociedade como um todo, isso é o que dá sentido ao termo cidadão. Como dito, o texto é só um chute inicial na bola para que possamos construir as redes de elaboração de um plano mais efetivo e que nos capacite enquanto profissionais a atuar conjuntamente nesta causa que diretamente nos aflige.

14 de março de 2020

A pandemia e a cidade.

Em um mundo cada vez mais urbano e conectado, onde a conglomeração de pessoas se tornou um elemento comum de nossa sociabilidade, temos um desafio maior ainda diante de uma crise como a posta pelo coronavírus. Se em tempos pretéritos, o sanitarismo se constituiu como uma política de estado e de ação urbana que gerou inúmeras modificações concretas em diversas cidades, devemos refletir sobre o porquê de não mantermos hoje diversos programas de ações que engloba novamente a importância do sanitarismo como promotor de saúde para qualidade de vida, relacionado aos espaços que produzimos em nossas cidades.


Um grande equívoco que cometemos ao estudar os sanitaristas é observá-los apenas pelos impactos negativos e segregadores de suas ações urbanas. Esquecemos de averiguar os processos na totalidade dos fatos. As remoções compulsórias, campanhas de vacinação compulsórias, remodelação urbana além de seu efeito de segregação sócio-espacial teve o impacto, entre outros, de erradicação e tratamento de doenças que tanto afligiam o povo. Ao negligenciar parte do impacto técnico e científico das escolhas que dirigiam a política de sanear, nós urbanistas, nos colocamos fora desta pauta. Hoje pouco discutimos o papel do arquiteto junto ao sanitarista em um projeto de intervenção na cidade.. Nosso ofício nos permite ser um importante elemento articulador entre as soluções de controle epidêmico e de manutenção da vivência urbana das cidades.


Estamos em um estado que nos exige o cuidado coletivo, primeiro ponto é este: entender nossa tarefa cidadã dentro do sentido de um contingenciamento. Somos potenciais vetores de contaminação de nós mesmos. A dispersão do vetor associado ao espraiamento urbano não é mais uma resposta possível e viável dentro das metrópoles.

Hoje, caminhamos por logísticas melhores. Traçamos planos de contingenciamento sazonais e que sejam mais efetivos para a redução do efeito multidão;aglomeração.  Porém, somado a isso, devemos fortalecer as ações clínicas e assistenciais associadas ao território, de forma que as mesmas sejam garantidas espacialmente dentro de raios aceitáveis de cobertura, vale lembrar que, de nada adianta evitar aglomeração em transporte urbano e em grandes centros se não evitarmos a mesma aglomeração em locais mais frágeis como os postos de saúde e atendimento. Para tal, o primeiro cuidado do médico de família associado ao Agente de Controle de Endemias deve funcionar bem. Precisamos fortalecer nossa rede de pesquisadores de forma que possamos apresentar a sociedade um profundo conhecimento científico sobre o território, compreender as possíveis logísticas de deslocamento e de pouso de tratamento para casos mais graves, além de sistematizar o uso do espaço urbano de forma a evitar aglomerar mas não matar a sociabilidade e espírito de vivência dos citadinos.

A cidade como conhecemos e vivemos nos põe em risco, e isso também é parte da vivência, por isso, se não tivermos em mãos este planejamento de defesa, corremos o risco de nos salvaguardar de uma doença alimentando outras. Uma ode ao espaço e sociabilidade aconteceu na Itália e foi amplamente “viralizado”. Diante do caos tomado e da quarentena, cidadãos vão às suas varandas tocar canções, a varanda, que os distancia e protege se configurou em espaços de grande vitalidade quando se reforça o espírito comum diante da luta em que estão. A pandemia nos revelou mais uma vez o sentido ubuntu, o entendimento pleno de que só sou porque todos somos.


Nos pôr em risco não é culpa da cidade, é parte importante da constituição dela. De forma que, nosso trabalho não se trata construir espaços que matem as relações sociais ou segregam-na em troca de um desejo de segurança a qualquer custo. O que nos cabe é pensar, neste momento, que por um lapso de tempo precisamos nos impedir de ser vetores de nossa própria destruição. 

Um equilíbrio interessante pode estar em uma fala de LeGoff quando citou o espaço de São Francisco de Assis como um lugar de respiração: alternância entre cidade e solidão onde sua geografia de vida é uma rede de cidades e a solitária estrada entre elas pela qual se vagava. Este pode ser um modelo interessante para pensarmos ações dentro de um padrão de contingenciamento. Saindo do espaço e retomando a perna economia, também podemos fazer um pouco de analogia com o pauperismo de São Francisco, para quem o desapego e a partilha são elemento fundamental de estruturação social. Fortalecemos assim o que nos é comum em economia e o trabalho do arquiteto, o cuidado com o Eco (óikos - casa). Não a casa privada como pensamos atualmente, mas um sentido de casa onde casa e mundo são quase uma coisa só.

Assim, vamos respirar, parar fisicamente em nossa solidão que evita aglomerações mas fortalecer o “vagar” através das redes de conhecimento onde a velocidade de trocas pode nos proporcionar um melhor trabalho de busca da cura, esse é o material que nos acomoda hoje. Por o mundo em quarentena não significa propriamente um estado de exceção, mas um caminho de tratamento contra um inimigo que corre no vento contra nós. Esse é o olhar material que vejo sobre os fatos.

Porém um problema que se abre é o efeito da quebra da inércia. Talvez o maior temor de muitos sistemas diante de uma economia como a conhecemos é que, se sua roda para, muita coisa desanda. Neste sentido para tal precisamos reforçar o sentimento (ainda mantendo a analogia franciscana, o que não significa que devamos reduzir o mundo ao franciscanismo) precisamos pensar o pauperismo e seu desapego e sua partilha. Precisaremos que compromissos políticos emergenciais maiores sejam assumidos pelo poder público.Garantir um plano de sustentabilidade da vida cotidiana mediante a parada do mundo é fundamental. Um sistema de saúde universal fortalecido, boas ferramentas para que o sistema de previdência possa garantir que não tenhamos perdas de renda, o fortalecimento da seguridade social, com instrumentos que permitam uma igual inclusão de atendimento aos mais precarizados que hoje vivem de bicos e freelancer. E isso precisa ser solucionado rápido. Isenção e criação de subsídios governamentais para impedir que a população fique ao relento.

Talvez o Brasil tenha dado uma pequena sorte diante do COVID-19, estamos no verão. Temos um tempo curto, mas temos tempo de assumir e sistematizar com seriedade a gestão deste problema. Inúmeros eventos de grande porte de multidão e aglomeração já foram cancelados ou adiados, este é um caminho ponderado e necessário diante da realidade que nos vem à frente.

O processo de controle de aglomerações e movimento de pessoas por si só não terá eficiência se não houver um reforço forte do sistema de saúde no âmbito de diagnóstico e não houver um esforço do planejamento econômico e social para garantir o básico de sustentabilidade a sua população. Resumindo, precisamos ter uma política de bem estar social reforçada e que atue de forma emergencial, para garantir o mínimo de dignidade aos cidadãos diante do impacto econômico que um processo deste causa no país. Este é o dilema: como lidar por exemplo com a massa de trabalhadores que depende da continuidade diária de seu trabalho para garantir seu ganha pão? Citamos aqui motoristas de aplicativos, entregadores de alimentos, pedreiros, entre outros, que neste momento está fora de qualquer guarda-chuva de seguridade social. 

Infelizmente investimos muito pouco em controle de epidemias no mundo. Temos o monitoramento constante da OMS mas não possuímos um sistema global de saúde que consiga agregar com mais eficiência o cuidado e ações estratégicas a toda população. Falamos aqui do sentido amplo de saúde como um bem comum tendo como diretriz principal, o direito universal à saúde. Tal sistema universal nos permitiria fortalecer não só o atendimento populacional, o controle estratégico de endemias, mas também a logística e a rede de desenvolvimento de pesquisas de forma que consigamos acelerar os processos de descobertas e distribuição de medicamentos e tratamentos.

101 anos após a gripe espanhola, lembramos ao leitor que não devemos cometer os mesmos erros. A negação ou eufemismo sobre a realidade pode se tornar nosso maior inimigo diante do esforço coletivo mundial para conter o vírus. Tracemos pelo real, com planejamento, trabalho árduo, organizado em redes de forma coletiva, vamos garantindo o tempo hábil para que os campos da pesquisa científica mundial alcancem algum bom resultado em breve. Enquanto isso, vamos fazer nossa pausa, mas sem perder o ensinamento que os italianos nos passaram de forma viral nas redes, nada nos impede de cantar em nossas janelas e varandas.






12 de março de 2020

Pequena reflexão sobre os rumos de uma pandemia

     O anúncio da expansão territorial pandêmica alcançada pelo corona vírus pôs o mundo diante de muitas reflexões. Dentre elas, escolherei um caminho para o debate. Qual o limite de nossas fronteiras?
     A velocidade com a qual o vírus alcançou o mundo revela a importância de pensar e produzir o comum como um caminho de sobrevivência. A ciência se inter-relaciona na busca de tratamento e cura. Junta-se o resultado de um pesquisador de um lado do planeta com os dados de outro somado a artigo de um terceiro.
     O processo pandêmico derrubou estruturas econômicas e revelou o que muitas vezes esquecemos: como há fragilidades nestas conexões que organizam o mundo em seu delicado equilíbrio de desigualdades. O Vírus afetou o kernel deste universo e desvelou uma coisa óbvia: a compreensão do mundo a partir da simplificação das explicações econômicas e o olhar hegemônico da importância da mercadoria não trazem respostas a todos os nossos problemas. Basta uma doença não caber bem nas caixinhas pré-definidas do sistema para que as informações circulem truncadas, surjam teorias diversas e explicações desconexas.
        Isso se revela mais problemático ainda quando chega ao nível dos chefes de estado. Há por exemplo um equívoco tremendo quando um ministério no Brasil não fomenta a participação de nossos pesquisadores nos processos coletivos mundiais de desenvolvimento de tratamento do vírus. Equívoco similar ao Trump e seu discurso simplista de fechamento de fronteiras, nada muito diferente das tentativas do governo chinês de não deixar a informação circular a velocidade do vírus.
     Ao que tudo parece, o maior desafio de enfrentamento ao COVID-19 está em acompanharmos a velocidade viral, este novo paradigma de tempo e território. Este paradigma ao que parece está sendo melhor compreendido no universo da saúde mundial. Falamos de um ente que não atinge um grupo social definido, não faz recorte de classe e não reflete só nas minorias, sejam elas étnicas, religiosas ou de gênero. Sua velocidade e capilaridade social também nos impede de combater este ente por um olhar puramente classista de tratamento. Seria inviável propor tratamento e cura apenas para um determinado grupo, visto a capacidade fácil de transmissão.
      Desde o sinal de pandemia e mesmo antes, a comunidade científica se envolveu na disputa e demonstra ter as melhores ferramentas de ação para o combate. Um rápido correr pelos noticiários e somos capazes de ver que, enquanto Trump pede bloqueio do país a vôos estrangeiros e Bolsonaro faz piada, cientistas brasileiras mapeiam geneticamente o virus, cientistas chineses e cubanos trabalham em desenvolvimento de vacinas, cientistas catalães trabalham em parceria com grandes farmacêuticas. Todos atuando em rede com um foco.
       Não estamos descrevendo uma história militante anti-imperialista e nem o vírus é um ente do mesmo tipo. o que está posto ao que me parece é: diante de uma ameaça global, só conseguimos dar resposta eficaz em caráter global, onde o ato de compartilhar se torna o instrumento mais bem sucedido de resposta viral.
        Vale a pena entender como o mundo se porta cientifica e tecnicamente diante da crise instalada, acompanhar a necessidade de universalidade do sistema de saúde e vida como um direito comum e utilizarmos como exemplo. A velocidade viral não poderá ser vencida pelo tempo lento das burocracias, dos segredos de estado, sigilo industrial ou elaboração de patentes, não que isso esteja excluído, mas que sobrepujando isso traçou-se um projeto ético comum.
       São múltiplas as fronteiras que vamos quebrando se buscarmos outros caminhos de reflexão, sejam elas as territoriais, sejam as narrativas e simbólicas. Em um mundo que tanto descredibilizou a ciência e onde a representação pela representação, sem projeto comum se tornou um padrão político, a ciência segue nos apresentando bons rumos.
      Em países como o Brasil, as lutas serão maiores. A falta de planejamento político e interesse pela saúde universal nos imputa a iminente tragédia. Riscos como a falta de saneamento para grande parte de nossas cidades nos trará o maior dos desafios, salvaguardar o colapso do sistema de atendimento primário a população, que já sofre com muitos problemas. Não temos o direito a escolher qual doença trataremos ou não, portanto nenhum discurso de comparação entre doenças e suas letalidades não cabem em pauta. Importante entendermos fora da polarização que, o oposto do alarmismo não é a negação dos fatos.
    Neste momento, politizar o debate sobre o COVID-19 será romper as fronteiras da polarização em que as rasas representações se sustentam e construir um projeto comum, onde independente dos interesses privados que os envolvam alcance o objetivo focal de tirar o mundo do alerta de pandemia.


1 de março de 2020

455 Anos sem direito universal à cidade

Em um prazo muito curto de tempo o brasileiro tem se sentido honrado com a matéria das pesquisadoras que se dedicaram e mapearam o genoma deste novo vírus que tem representado um perigo mundial, e ontem mais um caso de chuvas na cidade que matou cidadãos, inviabilizou diversas moradias e bairros inteiros estão sofrendo com a cheia. Qual a relação podemos traçar entre os dois?

Pois, ao menos uma relação importantíssima há. Ambos os casos refletem diretamente, a meu ver, o bem sucedido entendimento cultural do direito a saúde universal, pensamento de direito universal este que não chegou no campo da arquitetura e engenharias.O que quero dizer com isso, mesmo o SUS tendo mil problemas, o povo entende que tem direito a médico, hospital, e outros de graça e a academia e os médicos, também entendem seu papel profissional diante do povo. O mesmo não acontece no campo profissional das arquiteturas e engenharias. 

Vivemos em cidades que se constituíram com base em algumas leis do capital: lobby automobilístico, loteamentos de grandes terrenos formando bairros e coisas do gênero construíram a maior parte de nossos espaços. Dias como os de hoje (1 de março de 2020) este erro de planejamento e projeto cobram caro, mas isso não pode ser desculpa para o erro perdurar por décadas, quase um século pelo menos. 

O problema é que esta lógica de conceber e tratar os espaços segue firme, optamos com a Copa das Copas e Olimpíada das Olimpíadas, fazer mais uma vez o mais do mesmo. Construímos com nossas arquiteturas e engenharias (algumas nem tão nossas assim) uma cidade desigual com implantação de embelezamentos por um lado e apagamentos por outro. Assim caminhamos com remoções e esquecimentos dos locais onde moram a maior parte da nossa população. População esta para quem sobra a autoconstrução como ferramenta de sobrevivência. Nosso olhar profissional é tão pouco universalista que muitos de nós ainda enxergamos a autoconstrução popular como parte do problema de exercício ilegal da profissão.

Mesmo a criação da Lei de Assistência Técnica para Habitação de Interesse Social (conheça  a lei aqui) não tem o alcance pleno pois o povo a desconhece, tem baixa implementação nacionals, apesar de ser um instrumento excelente para iniciar este processo de universalização do direito a cidade. É triste perceber como a visão de mundo implementada sobre a profissão nos afeta. 

A milênios não há grandes inovações caras e de difícil implementação em projetos e planejamento de saneamento. Citamos por exemplo: cuidado com as águas, cuidado ambiental, construção de praças como pontos de lazer e encontros comunitários, arborização, entre outros que contribuam para a qualidade urbana e direito de vida digna nas cidades. O que nos falta é sim, a coragem de pensar as cidades de forma não segregada.

O tempo que nos vangloriamos de roda gigante ou BRT, ou algo do gênero, devemos gastar trazendo a cidade a escala que ela vive, do chão, do aperto de mão do xingamento e dos abraços, hoje enquanto muitos de nós que conseguem impor alguma voz dentro deste campo profissional estamos secos em nossas casas, inúmeros (inclusive profissionais amigos arquitetos e engenheiros) estão tirando água de suas casas, outros vendo a água entrar pela laje e viverão pelo menos semanas de mofo e cheiro ruim em casa. 

Uma chuva destas reflete para quem sofre dias sem dormir direito, trabalho duro salvando o que pode de móveis, salvando ao menos um cômodo da casa para aconchegar toda a família. São cidadãos que constróem a vida destas cidades e ficam a míngua, como fora no início do ano no Norte Fluminense, hoje foi na região metropolitana. 

Que o município do Rio de Janeiro, com toda sua complexidade, neste ano em que foi eleito Capital Mundial da Arquitetura, assuma a responsabilidade de ser exemplo da universalização do direito a construir. Isto não é um simples aplicar a lei d ATHIS, vai muito além, precisamos de um trabalho estruturante de modificação da ideia de pra quem construímos nossas cidades, esta luta é imensa mas tem que ser traçada. Precisamos de uma cidade que fomente do direito a arquitetos e engenheiros públicos que atendam a todos os cidadãos e não mais ao lobby de quem investe capital imobiliário nela apenas, até porque neste momento estes lobbystas da cidade estão secos e confortáveis. Os donos da roda gigante tem telhados e lajes impermeabilizadas, a maior parte da nossa população não!