30 de janeiro de 2020

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Águas que nos afetam

A região Sudeste do país está enfrentando neste verão mais uma derrota urbana com as enchentes. O problema é histórico, inicia-se em grande parte nos processos de implantação e estruturação de cidades que não pensaram de forma coerente seus cursos d’água. Metrópoles como as do Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte ao optarem por um padrão urbanístico de favorecimento do automóvel invisibilizando seus rios criaram problemas de difícil solução.

O problema se torna pior a medida em que, tempo a tempo, pouca mudança neste pensamento se modifica. Escolhemos caminhar na contramão de milênios de história, onde a humanidade buscou e vivenciou seus cursos d’água como o bem mais precioso de suas organizações sociais e aglomerações em povoados e cidades. As águas tem valor sagrado, simbólico, afetivo, de saúde, valor paisagístico, contemplativo, podemos citar inúmeros valores que não cabem reduzidos a políticas econômicas simplistas e que nem todas as prosas e versos seriam capazes de definir tamanho afeto.

As águas que tanto nos faltam hoje na cidade do Rio de Janeiro, são as mesmas que nos afetam nas cheias, resultantes de falta de planejamento urbano cuidadoso com nossos recursos naturais. O Plano Nacional de Saneamento se tornou quase uma ilusão, uma tentativa que conseguiu pouquíssimo resultado em um universo onde as forças políticas permitem que a Nestlé tome posse das águas de São Lourenço. Enquanto as forças políticas em seus níveis estaduais e municipais pouco ou nada fazem para garantir o saneamento seja em seu tratamento de esgoto, a qualidade dos recursos hídricos, a proteção das matas ciliares, APAs e APARUs, entre outros, desastres como os ocorridos em Belo Horizonte e no Norte Fluminense do Estado do Rio de Janeiro se tornaram casos previsíveis, apenas esperando a próxima chuva para acontecer.

Precisamos retomar a relação da água com a vida, recuperar as margens dos rios e córregos, tratar nosso esgoto e cuidar de nossos resíduos pluviais. Não há mistério em lidar com isso no campo da arquitetura e engenharia, apenas estamos presos na falta de vontade política para admitir que nem tudo pode ser decidido pelas forças dos mercados ou pensado como moeda de troca em uma relação de consumo. O principal valor da água não está na sua troca, mas no seu uso e no seu direito comum a todos.  Enfrentamos hoje erros urbanos de um passado recente na história da humanidade, mas ao mesmo tempo mantemos e fazemos novos erros nos momentos presentes e assim deixamos um legado triste para os que aqui virão. 




27 de janeiro de 2020

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Em memória às vítimas do Holocausto e o mundo presente


Hoje comemoramos o dia internacional em memória das vítimas do Holocausto. Manter a memória viva é importante e fundamental, em especial no Brasil, onde vemos um advento de revisionismos históricos e falácias a respeito do tema. Mas neste dia gostaria de lembrar da importância da história como forma de estruturação do pensamento no mundo presente. 


O atual sistema social, político e econômico em que vivemos construiu novas formas de opressão humana associando os diversos elos que a envolvem (étnico, cultural, entre outros). O que em parte representou o território de Auschwitz e outros campos de concentração? Faço aqui um dos recortes dentro do todo que foi o horror deste sistema. Auschwitz e outros campos similares se relacionavam e estruturavam territorialmente uma lógica de produção econômica. Sob o discurso racista que embasou o Nazismo justificou-se a criação destes territórios de segregação. Sob a disseminação da construção simbólica racista e eugenia, algo que poderia ser exemplificado com frases atuais como “o índio está evoluindo e tornando-se um ser humano igual a nós”, tais espaços foram concebidos, garantiam mão de obra escrava e descartável ao sistema que alimentavam.


Auschwitz graças a deus não existe mais, resta a memória e a história que não deve ser desconstruída ou desacreditada, porém mil formas de territorializar e oprimir o povo se mantém firme e em diálogo com os sistemas econômicos. Campos de refugiados, Guantánamo, ou quaisquer presídios brasileiros que acumulam pessoas sem sequer o primeiro julgamento, todos apontam como arquiteturas destinadas a um nível extremo de opressão da humanidade.  Se o campo de Auschwitz e similares serviram a um sistema de desenvolvimento dentro de um projeto nacional racista, não podemos negar o quanto de campos e disputas territoriais atuais podem servir ao mesmo processo, porém dentro de uma conjuntura econômica diferente onde a violência gera e retroalimenta inúmeros mercados.

As guerras (tanto entre nações como intra-territórios) seguem padrões semelhantes, criam a terra arrasada e depois abrem o espaço para que o grande investimento entre nestas terras, este é o espólio que se sobrepõe aos direitos dos povos de habitar, pertencer, vivenciar e conceber seus lugares. A desterritorialização de povos se tornaram parte de um braço rentável para o capital, seja por exemplo os campos de refugiados de Gaza que hoje se transformaram em verdadeiras cidades, ou os campos de refugiados sírios situados na Jordânia. Cada qual se adequa a uma forma de exploração da opressão humana dos povos sem lugar que tiveram suas vidas e histórias dilaceradas.

As últimas infames falas de nossos líderes de governo Bolsonaro e seu secretário de cultura trouxe ao salão a necessidade de debatermos o Nazismo e Fascismo de forma séria, e isso trouxe as redes novamente o filme arquitetura da destruição. O centro do filme demonstra como o sistema capturou o simbólico e reconstruiu a estética ao se impor na população. Esta construção de pensamento se capilariza na sociedade e se torna parte do discurso cotidiano da mesma, isso se potencializa em um país como Brasil, que não conseguiu por exemplo romper suas ferramentas de segregação e seu racismo estrutural.


Assim que palavras como a de Bolsonaro, apontando claro discurso de eugenia com relação a indígenas, ou de Alvim parafraseando Goebbels, podem chocar a muitos de nós. Estas declarações, e mais, suas ações não necessariamente afetam os mercados ou o cotidiano a ponto da queda completa do sistema. Os índios que segundo Bolsonaro “não são gente evoluída” por sua vez não serão tópico de “uma arte heroica” mereceriam o direito ao território que tem ou este território poderia ser melhor utilizado com a exploração sustentável dos ecoplans do BIG?  Enquanto isso, Bjarke Ingels se justifica aos brasileiros:

“Não podemos esperar que todas as instâncias públicas estejam alinhadas com todos os aspectos de nosso pensamento, mas podemos garantir que possamos trazer a mudança que queremos ver no mundo através do trabalho que realizamos“, afirma Ingels na nota." 

A nota de defesa de BIG não traz nenhum estranhamento a quem observa os caminhos do mercado internacional da arquitetura de forma crítica. Seu projeto para o Brasil por sua vez não se importa com o genocídio indígena ou as queimadas na Amazônia. Assim, aponta um imenso anacronismo ao defender intervenções ecologicamente sustentáveis junto a um governo que defende abertamente o inverso. Obviamente muito mais suave que o nazismo não quero fazer tal comparação com o BIG, porém sua defesa aponta para argumentos semelhantes aos apresentados no tribunal de Nuremberg, com uma grande diferença: BIG é um escritório liberal que pode dizer não ao Bolsonaro, diferente dos soldados que apenas recebiam ordens.Remeter a memória das vítimas do Holocausto é se dedicar para que novas vítimas e novos Holocaustos não mais aconteçam.


22 de janeiro de 2020

Crise, distopia, luta e um novo pacto social

O mais recente relatório da OIT (Organização Internacional do Trabalho) traz indicativos de que o número de pessoas desempregadas no mundo deve aumentar cerca de 2,5 milhões, apontando assim a manutenção da crise econômica global. O relatório aponta também que é significativo o número de pessoas que hoje já não conseguem manter uma vida a partir da esfera do trabalho.

Entre alguns fatores, recortamos como o mais marcante a estagnação no crescimento da economia global. As pautas propostas pelos programas e defensores de um sistema de austeridade não conseguem alcançar resultados efetivos de melhoria, antes disso operam em viés oposto, aumentando as redes de desigualdade social nos sistemas. As pautas progressistas voltadas a pleno emprego e outros fatores também alcançam pouca efetividade atualmente em um mundo cujo padrão econômico se tornou a financeirização , a precarização, informalidade e desemprego. 

Como exemplo, cito um recorte: dados recentes do DIEESE mostram que a política de trabalho intermitente (uma das principais ferramentas da flexibilização e precarização do sistema produtivo e pautas de salvação da austeridade) não alcançou os frutos que se imaginava. Representando 0,3% do estoque de vínculos formais no mercado de trabalho, sendo que a renda mensal destes, mal alcançou um salário mínimo. Fora publicado também em Janeiro deste ano (2020) pelo DIEESE o custo da cesta básica no Brasil. Verificou-se neste que um trabalhador remunerado com salário mínimo comprometeria no mes de dezembro de 2019 em média 48,27% do salário em cesta básica. Segundo IBGE, em 2019 cerca 41% da população estava ocupando as redes de informalidade do trabalho. Estes dados indicam a super precarização (informalidade e desemprego) como um padrão que pode se hegemonizar na sociedade brasileira. Um padrão não muito diferente de outros países como Venezuela, Chile, EUA, etc. 

Quando somamos a crise econômica com o fator climático (que já se torna impossível não ser posto em pauta) percebemos que o problema é muito mais sério e envolve os caminhos estruturais do planeta.

O colapso ambiental dá inúmeros sinais de irreversibilidade, afetando principalmente os países mais pobres e por sua vez menos estruturados. A crise que está posta pode levar a humanidade a enfrentar o maior dilema ético dos tempos recentes. Quando levado em consideração a estrutura geradora, e por sua vez a relação de custo benefício da produção, percebemos que o eixo é a desigualdade. As nações ou povos que mais sofrem com a crise econômica e ambiental, são na maioria das vezes, os que menos se beneficiam das estruturas geradoras das riquezas e dos efeitos nocivos ao planeta.

O grande xeque que pode ser nosso xeque-mate ou gol de morte súbita se dá no campo ideológico onde os poderes estabelecidos não conseguem mais responder aos anseios dos povos e os povos não conseguem mais se repactuar. Para reestruturar o pacto social emergencial, devemos trocar o foco das políticas da busca insensate do crescimento econômico para a busca pelo fim da desigualdade. Este provavelmente será o caminho para o reequilíbrio da humanidade em um planeta que já não suporta a constante produção de valores de troca e riquezas que se mantém concentradas em um seleto grupo de viventes. 

Não haverá formas de pactuação social que amenizem sem um impacto radical, em um planeta cada vez mais empobrecido e sem acesso aos mínimos recursos naturais que garantem o direito a sobrevivência. A pauta que busca o crescimento teme a parada da produção constante de riquezas pois a mesma geraria o colapso do sistema vigente, porém, a continuidade desta busca eterna por crescimento também está nos levando ao colapso.

Não precisamos de mais produtos, precisamos sim recuperar o valor de uso do que já produzimos, aplicar políticas de distribuição da renda hiper-concentrada entre os que não tem, pautar a construção de bens comuns a humanidade, em especial os que garantem a continuidade da vida, como os recursos hídricos, as florestas, a universalização do direito a cidade/campo e de renda, moradia, alimento, saúde, lazer, educação direito de ir e vir sem barreiras ou fronteiras.

As lutas serão grandes, o sistema atual mostra através de suas lideranças e estruturas de controle e poder que suas políticas podem se assumir tranquilamente malthusianas caso seja preciso. Em um mundo onde a massa de desempregados e marginalizados se torna crescente e afeta de outra forma a produção do crescimento do capital e onde o capital abraçou a vida como mercadoria. Esta vida também pode ser pesada pelo custo-benefício de existir ou não. O que cabe a esta vida é lutar.