15 de agosto de 2021

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O RAPTO COGNITIVO DA ARQUITETURA AMEAÇA O GUSTAVO CAPANEMA

 A construção de sentido das cidades se dá por experiências materiais e cognitivas que caminham lado a lado conforme define-se o projeto e as disputas sociais inseridas nelas. Há muito que o projeto de bem público no Brasil não é prioritário, e desde sua formação que o projeto de cidade para o Rio é segregado. Por mais belo e simpático que eu seja do conceito de costura, de cerzimento, a resistência não dá conta de resolver o problema real da cidade.

Hoje nos deparamos com mais um possível crime ao patrimônio. Uma lista de inúmeros bens públicos da União (mais de dois mil) que o atual governo pretende simplesmente desfazer, leiloando ao mercado privado. O coração deste debate se debruçou sobre o edifício Gustavo Capanema. Joia da arquitetura moderna mundial, o prédio em si é uma das aulas mais puras do que representava as premissas do modernismo. 


Importa-nos dizer porém que ele não está só o que coabita naquela esplanada é um conjunto de poderes. O Capanema convive com seus vizinhos de poder entre outras edificações que compõem um determinado tempo, uma expressão de sociedade e de povo. Cada edificação a seu modo, com seus estilos, elementos e espaços guarda minutos, dias, anos de história. De nada adianta salvar o MEC e perder o Ministério do Trabalho ou da Fazenda por exemplo.


Este é o Rio de Janeiro, a cidade que desmontou sua colina de fundação, o Morro do Castelo, símbolo de um Brasil Colônia e um Brasil Império, e em seu lugar construiu a Esplanada dos Ministérios de um Brasil Novo. Este é o modelo de urbanismo desta cidade. Assim foi a abertura da Presidente Vargas, assim foi o Porto Maravilha, assim foram as remoções de favelas, algumas partes de PACs e por aí vai. A arquitetura carioca (talvez brasileira) é uma constante de demolir para construir, um eterno retorno mal interpretado, onde no fim o que importa é a terra, o lote. Sobre toda operação há uma bela narrativa para estampar o sucesso nas revistas especializadas: o retrofit, o reinventar, o reviver, -façamos o novo. 


Esta cultura está impregnada no modus operandi dos gestores públicos e de boa parte dos profissionais arquitetos que projetam e constroem esta cidade. Onde nós lemos história, memória e pertencimento, outrem leem uma relação de preço/m² de solo.  E nesta, somos educados e por tabela “educamos” a sociedade de que arquitetura é a tábula rasa (ironicamente pregada pelo modernismo) passar a régua, limpar o terreno e subir do zero. Nesta leva, o senso comum acha bonito um condomínio recém inaugurado cheio de falsas colunas gregas mas trata como velharia um casario art-decó. Este é o rapto cognitivo que vivemos no dia a dia de nossas vidas.  E se há algo que explica muito bem o processo é o poema de Marina Colassanti que colo aqui:


Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.


A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos e a não ter outra vista que não seja as janelas ao redor.

E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora.

E porque não olha para fora logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas.

E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma acender mais cedo a luz.

E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.


A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora.

A tomar café correndo porque está atrasado.

A ler jornal no ônibus porque não pode perder tempo da viagem.

A comer sanduíche porque não dá pra almoçar.

A sair do trabalho porque já é noite.

A cochilar no ônibus porque está cansado.

A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.


A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra.

E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja número para os mortos.

E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.


A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir.

A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta.

A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.


A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita.

E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar.

E a ganhar menos do que precisa.

E a fazer filas para pagar.

E a pagar mais do que as coisas valem.

E a saber que cada vez pagará mais.

E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.


A gente se acostuma a andar na rua e a ver cartazes.

A abrir as revistas e a ver anúncios.

A ligar a televisão e a ver comerciais.

A ir ao cinema e engolir publicidade.

A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.


A gente se acostuma à poluição.

As salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro.

À luz artificial de ligeiro tremor.

Ao choque que os olhos levam na luz natural.

Às bactérias da água potável.

À contaminação da água do mar.

À lenta morte dos rios.

Se acostuma a não ouvir o passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.


A gente se acostuma a coisas demais para não sofrer.

Em doses pequenas, tentando não perceber, vai se afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá.

Se o cinema está cheio a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço.

Se a praia está contaminada a gente só molha os pés e sua no resto do corpo.

Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana.

E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.


A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele.

Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se da faca e da baioneta, para poupar o peito.

A gente se acostuma para poupar a vida que aos poucos se gasta e, que gasta, de tanto acostumar, se perde de si mesma.


É na singeleza do comum cotidiano que o rapto acontece, e é na segregação que ele tem seu melhor território de experimentação e expansão. O carioca se acostumou a ver seu paisagismo e seu patrimônio histórico se deteriorarem até o último suspiro, que pode vir por um incêndio, ou uma picareta demolidora. 


Nos acostumamos a ver bairros inteiros morrerem administrativamente e ver seus moradores sendo tratados como de segunda categoria, assim como sua cidade construída. Nos acostumamos a perder o direito aos espaços livres, o direito da memória. Nos acostumamos a ver patrimônios históricos serem demolidos por motivo torpe. E o pior, nos acostumamos a não nos importar tanto, quando estas operações são experimentadas nos territórios mais periféricos, como os subúrbios ou as favelas, ou as favelas dos subúrbios. 


Nos acostumamos a aceitar que certas práticas podem acontecer no lado invisibilizado da cidade. Um BRT que não passa mas cuja obra desmantelou o casario de Campinho e toda franja de casas e lojas de bairros inteiros, acabou com praças e parques. Os Cinemas de rua tombados que, com sorte viram igrejas, ou são destombados para virar só fachada de loja ou muro de condomínio (caso Cine Guaraci e Cine Olaria), parques e praças viram quintal pra vereador implementar qualquer equipamento de qualidade duvidosa. 


Quem não lembra também do Hospital do IASERJ sendo esvaziado às pressas pra ser demolido e virar só mais um terreno? pacientes morreram neste processo. Quem não lembra da Aldeia Marakanã ser ameaçada com armas sônicas em 2009? Enquanto isso, o próprio Maracanã, mesmo tombado, foi demolido! São tantos os patrimônios dilapidados em troca de qualquer valor.


Esta é a cara da nossa cidade, que já perdeu e muito o seu limite para o mundo paralelo. É nela que nos acostumamos a viver. Não é inocente também que o edifício do MEC se torne símbolo de ataque do governo, é ataque a um projeto de Brasil de Getúlio que um dia sonhou ser grande, que sonhou ver a educação como centro da mudança junto com Brizola ou ver a cultura como a potencializadora de um Brasil País de Todos com o Lula. Seu abandono é fruto de um uso que ruiu pelo interesse próprio do capital que não se importa com nada além do valor do solo e da capacidade de revenda. E pensar que se lá atrás tivéssemos encarado enquanto categoria de arquitetos em massa e sociedade a defesa firme dos casarios de Campinho, do parque Ary Barroso, dos Cinemas de Rua, da Fazenda Columbandê, Aldeia Marakanã, fossemos críticos a certos mega projetos, a certas operações urbanas em nossa formação e na formação dos nossos, hoje a história da cidade poderia ser diferente.


Há uma disputa de poder em torno deste projeto, mas nesta disputa a arquitetura segue um caminho fantástico de contradição e ambiguidade. Foram anos em que o olhar hegemônico da arquitetura tratou (e segue tratando) de apoiar os projetos dos inúmeros poderes vigentes sem fazer o devido filtro crítico. Ficamos felizes com um Museu de Arte do Rio construído no lugar de um hospital, felizes com qualquer projeto espetacular em aço e passamos pano no desaparecimento de vigas de aço corten de 40m de comprimento.


Ficamos felizes com os museus do amanhã às custas de inúmeros pobres que seguem sem acesso a lazer, cultura, habitação de qualidade ou sequer escritura de seus pequenos terrenos suburbanos que, segundo a proposta do novo plano diretor, poderão ser remembrados por construtoras para gerar maior interesse especulativo/econômico. 


Mas é isso, nos acostumamos, e enquanto nos acostumávamos e negligenciávamos, o rapto cognitivo aconteceu e o campo da arquitetura não viu. Não vimos, pois somos educados que arquitetura é peça de luxo, só a peça de luxo se torna importante, mas um dia até o rapto chega nela e isso nos acorda. Anos e anos desvalorizando a importância dos marcos arquitetônicos existentes de 80% do território desta cidade pesou.


Temos de abraçar o MEC, temos de lutar pelo MEC, mas salvar o MEC sozinho não salvará nada! O que precisamos mesmo é salvar a cidade desta métrica onde o valor de mercado do solo é a centralidade da discussão urbana enquanto o povo tenta com sorte sobreviver a esta loucura de cidade onde o estado foi terceirizado para as milícias e a vida foi mercantilizada.


A discussão do MEC é um reflexo e alegoria desta realidade: um bem público de valor incalculável que será precificado e leiloado para o mercado privado junto com outros 2mil bens.






6 de agosto de 2021

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Pilhagem Urbana do Rio

Começo o texto a partir de uma notícia recente. Saiu no diário do Rio matéria comentando sobre o agravamento imobiliário na Barra da Tijuca causado pela mudança da Vivo de sua sede neste bairro para o Porto Maravilha.  Esta matéria, apesar de focal, fala sobre um processo histórico da cidade do Rio, a disputa territorial pela centralidade comercial da cidade.

Os grandes pensamentos imobiliários e interventores que definem esta cidade, a muito tempo que tencionam esta disputa. Temos o Rio com um centro oficial, claramente delimitado e legitimado pelo processo histórico de formação deste país, e a proposta idealizada de construção de um centro novo. E em meio a isso, para o restante da cidade, o De Janeiro, fica o desleixo e esquecimento de tudo que não rebate diretamente nestes espaços.


Mapa turístico do Rio de janeiro


Esta cidade, que já fora um símbolo de esplendor, saiu de capital oficial da nação a capital cultural, a muito que segue sendo vista como um grande canteiro de obras. Não importa pensar a cidade pelas suas vivências, o que importa é criar possibilidades de solo para que meia dúzia possam construir. A partir deste movimento, se precifica toda a vida urbana. Sim, quando se inaugura um imóvel no Leblon cujo preço do metro quadrado é quase o dobro do que se tinha naquele bairro, isso gera uma reação em cadeia, subirão todos os valores de todos os bairros em escala, assim como o custo de vida total. 


A retirada do olhar espacial qualificado do território se torna um estratagema que a curto prazo pode favorecer o lobby da especulação, mas a médio e longo prazo deteriora qualquer boa relação de vivência para os cidadãos. Perdemos a queda de braços entre qualidade urbana x maior lucro viabilizado por potencial construtivo e com ela se vai também as ambiências, os elos de conexão que fazem a cidade ser cidade. 


Os anos de verbas gordas do Rio experimentamos um boom construtivo, Muitos dos terrenos das antigas fábricas foram se transformando em condomínios fechados, uma espécie de “barratijucanização” da vida. Não é difícil perceber, que inúmeros deles foram inseridos sem qualquer cuidado com o entorno, caem nos terrenos como uma ilha, só se preocupando com a porta de entrada e saída. Também não há preocupação de entender que a dinâmica das demandas por moradia na cidade não são respondidas por este elo da especulação imobiliária. Hoje é comum vermos muitos destes condomínios relativamente esvaziados, em bairros que sentem falta de verde, de praças, de calçamentos decentes. 


Rua Degas: Fundos do Norte-Shopping, Fundos da Leroy-Merlyn, porta de condomínio


O que se pensa em urbanismo pelo poder segue a mesma prática do velho sanitarismo, já amplamente criticado pelos sanitaristas contemporâneos mas ainda praticados nas pranchetas dos comerciantes de propriedade e alguns urbanistas desta cidade. A prática de se substituir um espaço embora aparentemente velho porém vivo, por um modelo que é completamente indiferente com a conectividade local. Se a verticalização exacerbada representou um caminho (questionável a meu ver) para Hong Kong cuja costa Norte precisa dar resposta a uma demanda de 26mil habitantes por km², não precisa ser um caminho para nós visto que a densidade do Rio é aproximadamente cinco vezes menor.


Prédios em Hong Kong: foto por Romain Jacquet-Lagreze.


Nosso problema habitacional não está na falta de espaço, mas na super concentração da propriedade que vira moeda de especulação. Não há eficiência da fiscalização pública, instrumentos urbanísticos como o IPTU progressivo ou a fiscalização sobre imóveis sem uso e função social é baixíssimo, seguimos ao relento. Assim, o rico especula o valor de sua riqueza com os terrenos que tem enquanto o pobre constrói no espaço que lhe sobra e o arquiteto desavisado se perde tentando achar a quimera da boa arquitetura, da boa forma, do urban design como salvação. 


Rua Nicarágua, Vista livre da Igreja da Penha, Direito Paisagístico.

Chegamos neste Rio Cidade Maravilhosa, Cidade Olímpica, já foi Rio 450, já foi Capital Mundial da Arquitetura cujo poder não demonstra minimamente o interesse de proporcionar qualidade urbana completa para 80% do seu território onde moram os mais pobres. Assim, nosso lugar segue refém das políticas mais toscas e da degradação de todos os bens construídos que nos são afetivos e importantes. Ao mesmo tempo que vemos surgir espigões em qualquer terreno vazio e não temos sequer respeitado por parte do poder, o direito de assistência técnica para construirmos no espaço que nos sobra.


Condomínio da Cury sendo construído na beira da Linha Amarela (via expressa sem comércio local, sem sinalização, sem apoio para pedestre).