31 de março de 2021

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Dos Porões. Ditadura Nunca Mais!

 Um dos projetos mais nefastos de segregação espacial conecta alguns porões no Brasil. Dos porões dos navios negreiros, aos porões das sanzalas, aos porões da ditadura e atualmente aos porões da cidade, nossa terra segue segregada.

Nesta semana, o Brasil relembra um dos momentos mais obscuros de sua história. Momentos em que as máquinas de combate das forças militares derrubavam um presidente eleito que buscava construir caminhos de justiça social e reparação histórica. É importante ressaltar porém que estas máquinas de combate sempre estiveram aí.

Nossa história, tanto a recente como a mais antiga é um compêndio de ações militares para assegurar que as condições de segregação popular permaneçam, pois esta segregação move parte de nossa economia. O Brasil, que já fora um dos maiores receptores de pessoas escravizadas do mundo, mantém ainda na pele e no corpo negro o peso do açoite. O faz enquanto sua elite disputa o espólio do território, do poder e controle financeiro, da valoração da terra entre outros.

Mesmo quem pleiteia as linhas ideológicas liberais como meios de se constituir uma classe média, famílias dignas de comercial de margarina, não conseguem desmontar esta estrutura de gestão econômica que nos conforma e nos mata em seus porões. O golpe de 64 é uma das caras trágicas dessa história, o momento em que uma elite militar assume o controle e substitui a lógica política pela lógica de guerra, calando toda e qualquer voz da sociedade. Um ponto diferente do que vinha sido antes é que agora não são apenas o povo pobre e negro que viria a sofrer os porões, mas uma classe média que despontava com cultura, organização política e voz, e assim como Jango, o presidente derrubado do poder, acreditava em um Brasil diferente desde que mudada a estrutura do poder.

Hoje o presidente ganhou o direito de celebrar o golpe de 64, direito este que vem de seu entendimento revisionista, fruto da escola que o formou. Os porões sempre estiveram aí. Se na década de 80 conseguimos alcançar a redemocratização por resistência popular, organização, enfrentando 21 anos de violência física e psicológica, tortura, mortes, alguns nunca encontrados, esta redemocratização não selou os porões.

A máquina de perseguição segue, e abre um novo porão, a própria cidade, onde a segregação define que lugares são matáveis. O que é favela se não o território onde as forças do capital tem o direito de matar sem julgamento e onde o favelado tem que resistir e lutar pela vida? Este é o território segregado cujo pacto pós redemocratização não conseguiu extirpar a violência de estado.

A escola de 64 forjou inúmeros controles urbanos e sociais a base de ferro e fogo. Forjou os comandantes brasileiros do Haiti, forjou a polícia pacificadora, forjou os cavalos corredores, os carros da linguiça, a liga da justiça, forjou Bolsonaro, entre inúmeros outros.

O novo modelo de controle autoritário que começa a despontar passa pela legalização da terceirização do espaço urbano da pobreza pelo Estado. Começam a rolar uns balões de ensaio de favelas autônomas, onde o nós por nós é fagocitado pelo capital deixando de ser uma tática de resistência e sobrevivência e se tornando uma forma do sistema girar controle, dinheiro e lucros em cima das redes de solidariedade. Os poderes de Estado que sempre estiveram nas favelas não sairão, e os porões da ditadura que ocupam estes espaços de poder também permanecerão, possivelmente controlando este sistema.

Quando dizemos Ditadura Nunca Mais! este grito não é apenas um eco de lembrar que os anos de chumbo nunca mais se repitam. Este brado também traz em si o desejo e necessidade de desmontar por completo esta máquina de guerra aos pobres, que segue desde os porões dos navios negreiros ditando as regras de controle material e cognitivo da segregação do nosso País.



24 de março de 2021

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Porque eu leio Koolhaas

Bom, primeiramente, esta é a parte um de um texto com este título, em breve produziremos outro para aprofundar a questão propriamente dita. A resposta ao que seria esta pergunta é simples de responder. Basicamente é importante ler Koolhaas, não por ele ser um arquiteto pensador de cidade, mas sim por ele ser um arquiteto que desenha, define e projeta arquiteturas de grande impacto nas metrópoles. 

O problema maior consiste porém no fato de que Koolhaas, embora não seja mais o arquiteto hype das escolas, ainda faz parte do nicho que hegemoniza conceitualmente a profissão. O arquiteto salvador, dono das verdades e das soluções, capaz de revitalizar toda a vida humana com um risco, um pensamento, um diagrama ou um powerpoint, mudam-se detalhes, elementos, concepções estéticas, mas pouco se muda a produção de ícones a construção de símbolos exclusivos a ser seguidos. Mesmo quando há mudanças de referencial, como vimos este ano com a premiação de Anne Lacaton e Jean-Philippe Vassal, o sistema imbuído de construir segue o mesmo. Também pouco falamos do principal, como estes profissionais consolidam-se no mercado.

Sobre a Koolhaas, o que me importa na leitura é menos seu entendimento de cidade e mais a forma como sua narrativa se relaciona diretamente com o seu papel no modo de produção urbana e arquitetônica do grande capital. Mas para nós o que interessa é o espaço imenso com o qual Koolhaas não se articula diretamente, e cuja produção é sombreada pela autoconstrução, pela construção simples, pelas estruturas diferenciadas, pela precarização profissional. Assim, a grosso modo, um texto de Koolhaas é praticamente um receituário do tipo de espaço projetado e concebido que este tipo de arquiteto quer e o koolhaanismo não reflete um movimento, no máximo um sistema publicitário de si.


Uma expressão pop de Koolhaas “Arquitetura é uma perigosa mistura de onipresença e impotência”, que já podemos comparar em sucesso ao paradoxo do abismo de Zaratustra, é uma ótima demonstração de como este arquiteto constrói sua narrativa por uma justificativa. Sua frase conceitual de arquitetura o coloca no limite de todas as possibilidades possíveis de serem feitas, além de lidar com o teto de total impotência diante da liberdade. Koolhaas não vai questionar o capital pois é impotente, porém ao construir seu edifício, tudo lhe é possível e o céu é o limite.


A profissão está em contradição, à medida em que houve uma expansão e democratização das universidades no Brasil, massificou-se o número de arquitetos. Assim, se a alguns anos tínhamos uma profissão com um certo controle social e econômico da entrada de novos nomes no campo de trabalho, hoje esta entrada está sem controle claro. A discrepância é que, esta massa de arquitetos não se encaixa no modelo hegemônicos da arquitetura ícone que produzem os Koolhaas da vida. Estes arquitetos seguem muitos deles periféricos, pobres e apartados da dinâmica do ofício.


A crise piora à medida que os modelos de empregabilidade derretem. Hoje o padrão é o desemprego e a luta pela sobrevivência. Você pode ser arquiteto ter um projeto hoje e ter que fazer viagens como uber amanhã para fazer o ganha pão. Cada dia mais, o novo mundo do trabalho gera novas relações também de título. Como se entender um arquiteto se seu trabalho é dissipado entre outras tarefas?


O mundo profissional costuma estudar os ícones por parâmetros diversos, crítica ao design, olhar estético, conceito, programa, paradigma. O buraco mais embaixo, porém, está na discrepância que há entre um CCTV (de Koolhaas) ter um custo de U$S 735 milhões de dólares em 2012, enquanto a massa trabalhadora enfrenta um mercado onde se encontram projetos prontos na internet por 30 reais. Esta é a realidade de imensa parte dos profissionais de arquitetura hoje (e não só de arquitetura), cujo sustento é totalmente inviabilizado por um processo material que não considera a profissão como algo de massa, como política de estado, mas apenas seu recorte de item de luxo.


Em épocas de pandemia e crise econômica, esta discrepância fica ainda mais acintosa e acirrada. Mesmo que o mercado se aqueça, possivelmente o capital já terá mudado a chave da precarização para outros pólos. A massa de profissionais tenderá a seguir aumentando à medida que novas universidades abrem cursos, e o sistema exclusivista chegará em um ponto de supersaturação.


Urge retomarmos o conceito de produção para todos. Ver a qualidade técnica e construtiva da caneta BIC ou de um copo Nadir Figueiredo, dois feitos do design e pensar, porque não podemos retomar este princípio em arquitetura? Não significa fazer arquiteturas de carimbo ou algo do tipo, mas sim tentar traçar um princípio: o trabalho que eu faço é embebido no desejo de exclusividade ou no interesse dos povos? Nisso os laureados Anne Lacaton e Jean-Philippe Vassal me parecem mais interessantes que Koolhaas, não tão onipresentes porém potentes. Não que eu considere louvar ícones algo interessante, apenas acho interessante tecer críticas e reflexões.


Imagem extraída de : https://klaustoon.files.wordpress.com/2014/07/clog-rem-its-not-easy-being-kool.jpg

10 de março de 2021

A saída tem que passar pelos pobres

Estamos diante dos piores momentos da pandemia. Em grande parte construído pelo desajuste e escolhas políticas erradas de Bolsonaro. Um ano de pandemia, perdemos muito tempo em disputas negacionistas e pouca ação concreta unificada. E sim, imensa parte disso tudo está na incapacidade do presidente atual se posicionar como se estivesse em uma guerra contra tudo contra todos, da ONU ao meu vizinho, qualquer um parece ser inimigo latente do Bolsonaro.

A saída bolsonarista, ao gritar a bravata de que a economia não pode parar, ao fechar possibilidades de seguridade social e ao tencionar que os mais pobres sigam trabalhando, aprofunda a crise da doença e perde o principal ativo para o país, seu povo que morre ou que sofre pelas perdas de familiares. Sua política lembra uma leitura contemporânea de eugenia, entrega a coletividade de braços abertos para a doença, e nós que tenhamos a sorte de não morrer.

Se o Lockdown era uma realidade necessária no início, hj se torna crucial. Porém há um embate material que devemos realmente considerar, o Lockdown não se resolverá por decreto ou lei, não sairá de cima para baixo sem campanhas de orientação e sem uma estrutura material de apoio.

Em meio a imensa crise humanitária, e sendo parte desta crise econômica, esta tem que estar na nossa pauta de solução também. 

Dizemos: temos de fechar bares e restaurantes! Mas não damos estrutura social para garantir aos mesmos a manutenção da vida de seus funcionários e donos.

Dizemos que não se deve abrir a escola antes da vacinação, mas não planejamos a inserção dos professores como prioritários para a vacinação. E não planejamos alternativas anticapitalistas de educação emancipadora capaz de contrapor os modelos “EAD” apresentados.

O país precisará construir um plano completo, não há dúvida, a pandemia irá perdurar por um bom tempo no Brasil. A crise econômica irá se expandir e isso depende de um projeto, que não será simples de agradar a todos como em tempos de vacas gordas. É imprescindível termos em mente, o Brasil de 2023 imerso na crise global e humanitária a construção das saídas precisam ser abertas o mais rápido possível ao debate popular para que sejamos capazes de construir para além do roteiro publicitário e midiático. 

As disputas de poder, de bastidores, conversas de eminencias pardas, não são tão prioritárias, o foco a meu ver é a materialidade de como produzir em meio ao caos a mudança que nos tire da queda livre em que estamos. 

Criar formas de amparo e sustentação dos pequenos e médios comerciantes via recursos públicos por exemplo pode ser um meio de girar a saída, assim como criar protocolos e orientações que facilitem o funcionamento destes (que podem atuar com entregas a domicílio por exemplo, entre outros). Por que não abrir linhas de crédito emergencial ou fomento para pequenos e médios negócios? 

Pra romper o aprofundamento da crise também precisaremos de novos pactos, como exemplo investir pesado no sistema de pesquisa e tecnologia. Investimento deste porte poderia nos inserir novamente no circuito de países que têm capital humano de qualidade para produção de saberes. 

Retomar investimento em softwares livres (uma luta que parecia perdida mas começa a dar sinais de querer voltar vide o caso do INRUPT), lutar por quebra de patentes em saúde e quaisquer itens imprescindíveis à vida humana na Terra. 

Tornar eficiente a gestão nacional de dados nacionais, repactuar a relação entre o sistema privado e o sistema público de saúde, é inaceitável passarmos o que estamos passando: leitos de UTI do sistema privado, por exemplo, não serem unificados ao do sistema público em meio a pandemia e diante de uma fila de doentes.

Se não tudo, ao menos a educação integral e a saúde deverão ser prioridade universal e pública, com olhar especial para os ciclos básicos e fundamentais do ensino e para a saúde preventiva. Esse é o investimento robusto que deixa um verdadeiro legado por séculos de gerações.

E o principal para o momento: Criar uma estrutura de seguridade social robusta capaz de implementar a renda mínima universal e uma aposentadoria que garanta dignidade. Lembrando que estes Programas, cujo conceito e necessidade de existir é considerado por pensadores de diversas vertentes políticas, dos progressistas até pensadores apreciados pela direita conservadora.

Assim, não bastará ao futuro, que o pacto seja com grandes empreiteiras criando uma massa de pleno emprego embasada na construção civil, ou com bancos em pró de crédito para criar uma massa consumidora. Por mais que este caminho possibilite massificar empregos e algum bem-estar social, não há saída que se sustente só por aí. Muito menos pactuar acordos de apoio e não violência com os poderes milicianos instaurados e que hoje dominam inúmeros territórios expulsando os sistemas do Estado de Direito deles e se constituindo como Estado paralelo.

Qualquer lugar que tenha recurso escasso, como o que esta crise do capital nos impõe, sabe que as escolhas políticas terão de ser muito bem ajustadas e acertadas e sabe que não dará para cobrir a todos. Resta a nós entender qual é a prioridade de cobertura. A meu ver, devemos pactuar com os mais pobres prioritariamente. Construir, não mais uma ascensão do bem estar baseada em consumo, mas sim baseada em capacidade de produção, saber técnico, conhecimento científico, entre outros. Os ricos irão chiar (não falo da classe média), mas é melhor que doa nestes um pouco para o bem de todos os que não tem fuga ou privilégio.

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texto aumentado a partir do postado originalmente em:

https://twitter.com/rodrigobertame/status/1368483615311601667