29 de julho de 2021

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“As nossas riquezas, as nossas carnes, as vidas, tudo. Vocês venderam tudo!”


É interessante este ponto de vista do sujeito indeterminado no lugar em que rotineiramente damos a notícia apontando o incêndio como sujeito. Pois bem, não poderíamos nunca imaginar que hoje, dia 29 de julho de 2021 estaríamos novamente debatendo o mesmo elemento e apontando o que denunciamos com a notícia: Incêndio atinge depósito da Cinemateca Nacional. 

Originalmente matadouro, o patrimônio se manteve e passou a abrigar a cinemateca brasileira após interessante projeto arquitetônico de Nelson Dupré. Este não é o primeiro incêndio que assola a cinemateca, que já viveu dias de dor em 2016. Este infelizmente é o retrato comum de um país que vê seus espaços de preservação da história sendo lançados ao relento. 

Uma das primeiras formas de destruição dos mesmos é a degradação simbólica. Vivemos uma Terra onde o desmonte cognitivo das nossas memórias é constante. Somos massacrados pelos mais diversos artifícios para tal, desde coisas como: estudar é chato, até o discurso de que o novo sempre é melhor, vivemos rodeados por um cotidiano que nos consome deixando-nos pouco tempo para buscar algo fora da cartilha. A vida passa a ser um dia a dia de embebedar-se com séries e novelas, consumir redes sociais, discutir notas sensacionalistas de jornais. 

A História é só o velho, e os velhos não têm lugar na agenda. Mesmo para a agenda mais progressista, os corpos militantes são os jovens, tudo é inovação. História, sociologia, filosofia são coisas efêmeras que não precisam estar na grade curricular do EAD  do MEC’ Escola feliz onde paga por um curso e o diploma vem de brinde. 

Quem precisa de cinemateca quando se tem a netflix? não duvidaria de ouvir esta frase por aí.

Praticantes tikkertokers se perdem em dancinhas virtuais enquanto o exército paramilitar domina todos os espaços reais em redor dos pobres. Quem vai bater de frente? Quem vai ler nas letras miúdas que nos permitem desmontar a memória, como uma criança dopada de rivotril.

Toda nossa História está sendo desmantelada, negligenciada, e pegando fogo. Os que choraram por Borba Gato e cobraram a cabeça dos que o incendiaram terão coragem de chorar pela Cinemateca e cobrar a cabeça dos que cortaram a verba do Cinema Nacional?  A luta pelos cinemas é uma luta insólita de resistência, seja a cinemateca que arde em chamas, sejam os Cinemas de Rua suburbanos se degradando e levando consigo a nossa história para a beira do esquecimento.

Esse é o país que o atual Estado nos deixou. Um país que nos empurrou pra fome e que se esforça para apagar nossa História e que forma uma elite de bosta que não está nem aí pra esse lugar. 

Perdemos muitas oportunidades nesta vida, dentre a maior delas tivemos anos de governos progressistas que não conseguiram produzir uma mudança cultural mínima neste país. Do fim da ditadura até hoje passaram-se ao menos uns 30 anos, tivemos tempo de construir uma sociedade com base forte, que entende a necessidade da cultura, da história, da educação de base. Paulo Freire passou longe das escolas, infelizmente habita ali na resistência, nas citações teóricas e nas tentativas táticas de alguns professores que ainda acreditam na possibilidade de futuro para as nossas crianças, mas nunca se tornou uma política de Estado. 

Mas é isso, nossa pedagogia é forjada pela violência, o vilipêndio e a fome, ficamos atomizados diante das chamas que corroem nossos cinemas e das maquitas que derrubam nossa arquitetura. 

Comemoramos medalhas que são verdadeiros feitos heróicos por parte de atletas que enfrentaram as mais terríveis dificuldades pois temos um país que já viveu a copa das copas e a olimpíada das olimpíadas e não conseguiu deixar um legado esportivo, mas jorra dinheiro da loteca federal para os caixas já gordos de dirigentes de determinados clubes de futebol. A gente aprendeu a resistir no meio de tudo isso e por dentro de tudo isso. Passamos anos caminhando pelas brechas que nos foram permitidas, mas o mundo não pode ser só isso e resistir apenas não está mais dando resultado.

Este país não pode ser mais refém dos netos e bisnetos das elites cafeeiras que agora são agro pois agro é pop. Que escolhem algumas quadras de cada cidade famosa deste país pra chamar de linda, de maravilhosa, de global city, enquanto 80% das cidades ficarão ao relento, controlada por tiro porrada e bomba. Ficando reféns dos militares às milícias, dos Borba Gatos, dos Deodoros, dos Costa e Silvas e dos Bolsonaros.

Somos todos nós que perdemos hoje neste Brasil 


“As nossas riquezas, as nossas carnes, as vidas, tudo. Vocês venderam tudo!”





27 de julho de 2021

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Breve Reflexão sobre Estética e o Desencontro entre Arquitetura e Sociedade

Um de meus primeiros contatos no campo de estudo da estética, ainda na faculdade de arquitetura, envolveu disciplinas de estudo da forma e expressão gráfica. Em minha formação por sua vez, tais estudos sempre se embasaram em uma visão de mundo greco-romana (uma das visões mães da Belas Artes).

Embora o modernismo, pensamento que estruturou boa parte do início de minha formação, tenha proposto uma ruptura às Belas Artes, sua base filosófica ainda pairava no mesmo ambiente de estudo da forma ideal pela forma real, proporções áureas, uma certa harmonia estética que era ascética e hermética pro todo da sociedade. Esta base seguiu escola a dentro pensando projetos de arquitetura onde a pessoa não estava em um plano claro, e a condição financeira também não. Enquanto isso, o mundo aqui fora, no lugar vivido seguia construindo, a seu modo, com seus referenciais e suas condições de possibilidades. Estudávamos lajes planas enquanto pro povo o luxo era um belo telhado colonial das mansões da Casa Cláudia.

Mas pra não fugir, o principal desencaixe estava lá na base de formação. Pensávamos a vida por um viés da transcendência onde primeiro vem o projeto, emergido pra ser semelhante ao mundo perfeito do campo das ideias. O projeto seguirá seu rumo até que seja dada a obra, sempre icônica pois não cabe a arquitetura ser um simulacro.

Mas a vida real não cabe nesse mundo, ela acontece o tempo inteiro processo atrás de processo. A arquitetura é um acontecimento do espaço, concebido e vivido, e aqui o sentido anterior se desencaixa. Quando retiramos a arquitetura desse campo transcendente e trazemos pra experiência viva, o que estamos propondo é a discussão sobre a estética. Assim, não há mais uma boa e má arquitetura em si mesma, mas caminhos distintos por onde pensamos modos de operar o espaço num dado recorte de tempo. A arquitetura segue o devir, o movimento permanente criativo e transformador.

Esta é uma diferença dinâmica importante quando queremos compreender como os profissionais de arquitetura adentrarão o universo da autoprodução do espaço construído. Precisaremos compreender que o importante na autoprodução não é tanto o fim da obra ou o resultado épico de um projeto, passa-se muito mais pela constante possibilidade de adequação ao momento, ao modo de vida. Um filho que nasce é um quarto que se sobe, um filho que casa é uma laje que vira um novo lar.  

É neste encaixe que o pensar ético e estético da arquitetura pode encontrar o caminho de construção mais democrático de toda a espacialidade. Nós, a humanidade já concebíamos nossa organização espacial antes dos traços gregos, antes da sistematização das sequencias de fibonacci e antes de Ihmotep. Ali no início da formação precisaremos redesenhar a visão de mundo, estarmos abertos a uma leitura transformadora da vida onde a contradição, o caminho de ida e vinda esteja a nossa frente. Precisamos estar sem apego ao caminho moral do saber, a busca da boa forma, do bom olhar, e nos permitir dialogar com os muito olhares que montam e moldam a realidade.  Precisamos aceitar que fibonacci é só uma redução limitada que nos ajuda a compreender a inúmera complexidade das formas da existência.

Se nossa categoria conseguiu sistematizar a troca de saberes que forma o campo técnico-científico através das universidades, nossa espécie organiza via uma longa rede de oralidade as trocas que atuam na autoprodução, daqueles que aprendem desde pequenos com pais, avôs, bisavôs que fizeram desde suas bibocas e palafitas até pontes, aterros, aberturas de túneis e palacetes.  

Vamos nos imbuindo da experiência, e soltando as amarras das buscas icônicas conseguiremos entender, ao explorar ao máximo a contradição e o diálogo entre o técnico científico e o saber do lugar conseguiremos melhorar amplamente a qualidade espacial do mundo em que vivemos. 

A crise do saber técnico da arquitetura diz muito mais sobre a necessidade de ruptura entre os atuais modos de fazer e compreender o que é arquitetura e necessidade de recomposição deste campo com os processos de existência e valores da sociedade atual. 




25 de julho de 2021

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Monumentalidade e Patrimônio: O que o incêndio ao monumento de Borba Gato nos diz.

Não vou alongar muitos argumentos sobre a questão do monumento aqui. Mas vou tirar um texto específico do saber técnico-científico do campo da arquitetura pra comentar a respeito da questão de patrimônio, monumento, preservação.

Partindo do texto: os 9 Nove pontos sobre a monumentalidade escritos por José Luiz sert, Frenand Léger e SIefried Giedion.
Seu primeiro ponto traz:
"Monumentos são marcos que o Homem criou como símbolos dos seus ideais, dos seus desejos, das suas ações. São concebidos para sobreviver ao período que lhes deu origem e constituem uma herança para as gerações futuras. Como tal formam um elo entre o passado e o futuro".
No seu terceiro ponto lembra:
"Qualquer época do passado que tenha desenvolvido uma verdadeira vida cultural tinha o poder e a capacidade para criar estes símbolos".
Então, o que há e comum entre a comoção em torno do ato de incendiar a estátua de Borba Gato e o descaso com o patrimônio material das regiões periféricas deste país?
O simples recorte histórico de uma sociedade que ainda mantém os modelos elitistas de formação deste país como ícones de valor e ideais.
Lembro-me de uma cena marco do Filme Adeus Lenin, quando a estátua de Lenin é retirada e o jovem protagonista vivencia ali o clímax a demarcação simbólica do fim da Alemanha oriental. (vale ver o filme).
Mas saindo do cinema e vindo pra vida. Ao incendiar a estátua, o que parte da população diz é: não compactuamos mais com os ideais que sustentam de pé estes monumentos. Isso é como Moisés descendo do monte com os Dez Mandamentos e vendo o povo adorar o Bezerro de Ouro, ou como quando após a derrubada de Saddam Hussein suas imagens foram postas abaixo.
Defender a preservação de um monumento é defender o que este simboliza e demarca na história. É interessante notar como a literatura de Victor Hugo foi importante para a valorização da Catedral de Notre-Dame.
E este é o ponto, se cortarmos Brasil a dentro veremos inúmeros bens tombados, monumentos, arquiteturas referenciais pra um grupo social, uma região, um povo, literalmente abandonados e degradados ano a ano, como um incêndio homeopático.
Bens históricos de referencia dos povos africanos ou indígenas sofreram anos de perseguição oficial, e ainda hoje sofrem com perseguições das mais diversas. Quantos não são os casos dos terreiros dilacerados?
No Rio um caso marcante deste recorte elitista é o desmantelamento e esquecimento dos cinemas de rua suburbanos. Arquiteturas símbolo de um tempo histórico onde as regiões suburbanas expressavam uma pujança social e econômica, ainda que estes lugares sempre estejam aquém e segregados nos projetos de cidade.
Os cinemas de rua seguem a cartilha da destruição:
O abandono homeopático por parte do poder público como maneira de destruir o valor cultural e simbólico para a própria região. Bairros inteiros perdem o sentido de sua história, ficam reféns de nunca se sentirem realmente importantes.
O recado social é claro:
Borba Gato ainda é uma referência de um modelo ideal para os que choram pelo incêndio, enquanto para estas mesmas pessoas os Cinemas de Rua são só algo que atrapalha a especulação sobre o terreno no qual eles foram construídos.
Este é o tipo de recorte de valor que nos foi dado no país. Não é esta parte do Brasil queira apagar toda a sua história, ela apenas quer seguir mantendo a narrativa da pujança elitista e manter no esquecimento todos os periféricos, favelados, suburbanos, negros, indígenas e por aí vai.
Esse é o retrato de um país que uma parte de suas elites e governantes chora pelo monumento escravagista de Borba Gato, no mesmo dia em que celebramos as Mulheres Negras da América Latina e Caribenha.