29 de abril de 2021

Viação Acari é apenas um elo da crise da Mobilidade Urbana

 

A cidade do Rio de Janeiro foi impactada ontem com a notícia do fechamento de mais uma empresa de ônibus. A Viação Acari pertencente ao consórcio Inter-Norte decretou falência, deixando a incógnita sobre o futuro de suas linhas e de seus trabalhadores.

A falência dos sistemas rodoviaristas na cidade refletem por sua vez o complexo emaranhado da política de mobilidade desta cidade, fruto de longa data. O texto por óbvio, não tem a pretensão de responder a tudo, mas de dar pinceladas em alguns elementos. Entre eles iniciamos dizendo que estamos em uma cidade complexa em termos de traçado urbano. Se por um lado parte pequena dela sempre recebeu melhoramentos ou projetos que permitiram um traçado planejado, uma parte imensa da cidade definiu seu sistema viário por colagens de loteamentos.


Cruzamento das ruas Dias da Cruz, Fábio da Luz  Souza Aguiar

Não é incomum, por exemplo, nós vermos ruas da cidade que sentimos que deveriam ser contínuas e não são. Assim também, é bem comum vermos bairros inteiros com traçados que parecem não ter certa racionalidade. Um exemplo disso pode ser notado comparando bairros vizinhos como Bento Ribeiro e Marechal Hermes como na ilustração abaixo.

Bairros de Marechal Hermes e Bento Ribeiro

É possível ver com clareza que em Marechal há um projeto inicial que visa uma linha vinda da estação criando quadras em vias ortogonais, com direito a praças pontuando a centralidade, e este raciocínio de ortogonalidade se espelha em boa parte do bairro, enquanto em Bento Ribeiro vemos ruas e quadras dispostas em formas mais livres, provavelmente resultado de diversos processos distintos de abertura de lotes e vias.

Esta cidade complexa não se pôs a planejar um sistema complexo que fosse capaz de responder as inúmeras peculiaridades que conformam o nosso tecido urbano de maneira a integrar toda a população dando-lhes o direito pleno de ir e vir com qualidade. Esta é uma das chaves estruturais do problema. Se num dado tempo, o sistema ferroviarista (bondes e trens) responderam bem e impulsionaram um já existente processo de ocupação suburbana da cidade, o lobby rodoviarista implementou a predominância deste sobre o poder dos trilhos, durante anos o resultado foi o desmonte dos bondes, o sucateamento dos trens e o pouquíssimo avanço do sistema metroviário.

Durante anos, os ônibus foram o principal meio de transporte da população carioca (em especial a suburbana). Apesar de não atuarem em massa como o trem, o ônibus permitia ligações de curta, média e longa distancia na cidade, além de dar mais capilaridade bairro a bairro. Quem não tem uma linha de estimação que dá voltas e mais voltas como um 940 por exemplo (que chega a passar duas vezes no mesmo ponto em uma mesma viagem)?

Porém os anos de hegemonia deste modal, embasados em articulação política e lobby de donos de empresas com políticos não favoreceu o próprio sistema, que se sucateou pelo comodismo. Quem nunca pegou um 910 sem parafusos, com o vidro imundo e com a companhia de baratas? Não é atoa que as vans e kombis, mesmo ilegais conseguem se manter atrativas e competitivas frente aos ônibus, mesmo com manutenção tão precária (ou mais) quanto os mesmos.

A mentalidade do período pré-olimpico carioca modificou alguns raciocínios, mas não a estrutura dos transportes. O BRT foi vendido como a grande novidade modal para os subúrbios e a reorganização da gestão das linhas em grandes consórcios de empresas se foi uma tentativa de melhorar a economia destas detentoras do controle do sistema de transportes rodoviários equivocou-se. A política de modais implementada a partir de 2015 gerou mais segregação, por criar mais baldeações entre ônibus, aumentando o tempo de viagem e o desconforto de muitos passageiros. O que ambos os movimentos não foram capazes de prever, é que a roda do tempo já estava passando e o ciclo vicioso que as empresas construíram estava no limiar de não responder mais às necessidades da cidade sem dar sinais de colapso.

Muitas linhas lucrativas para as empresas foram fatiadas com a reorganização dos serviços consorciados, tanto o BRT que eliminou inúmeras linhas de ônibus, quanto o fatiamento de linhas que faziam conexão direta norte-sul (que agora passariam a operar nos corredores norte-centro com um ônibus e centro-sul com outro) não trouxeram o lucro almejado a algumas empresas, além de dificultar o acesso da AP3 a AP2 (curiosamente a Viação Acari tem duas linhas que mantém esta conexão). Importante salientar que nesta mesma época, bairros como Cascadura, que atuavam como uma importante junção se viu esvaziado com o desmantelamento das inúmeras linhas em favorecimento da Transcarioca.

mapas dos donos da Viação Acari.


Quando vemos as rotas das linhas da Viação Acari, notamos como elas hoje estão pouco racionais, em muitos trechos da viagem as linhas seguem praticamente a mesma rota, em diversos casos são trechos facilmente atendidos por transporte ferroviário. Provavelmente o que temos hoje são rudimentos e vestígios de inúmeros recortes e reduções destas linhas na cidade.


A Viação Acari seguiu o mesmo ciclo vicioso de outras empresas que faliram no mercado. Não conseguindo manter padrão de horário, de qualidade dos transportes, tento linhas que praticamente competem entre si por trechos imensos da cidade, com CEOs e donos que gastam muito mais energia em negócios e lobbys com prefeituras e vereanças do que investindo na própria empresa. Empresas de ônibus urbanos na cidade do Rio operam muito mais em função da necessidade extrema do passageiro do que movimentando o interesse ou desejo deste passageiro, desta forma conseguem maximizar seu lucro oferecendo o mínimo necessário ao passageiro. Não dá para reclamar de uber ou van, ou quaisquer meios de transporte, se a empresa não for capaz de colocar suas rotas para funcionar com comodidade, segurança e pontualidade.

Assim, com um mix de problemas e diante de uma pandemia que modificou completamente a forma como vivenciamos a cidade, empresas como a Viação Acari tenderão a não conseguir sustentar seu funcionamento pelo acúmulo de má gestão e falta de planejamento no setor. Não há meio viável de investir em mobilidade urbana sem pensá-la dentro de um plano maior que foque no bem estar e qualidade de vida dos usuários. O problema do Rio de Janeiro é grave, com estrutura equivocada, que ao invés de fomentar integração urbana, compreender e atuar na real necessidade do cidadão, fomenta a segregação econômica e social do morador do Rio (e região metropolitana em geral) garantindo a margem de lucro na entrega do mínimo necessário para o trabalhador.

Como a chantagem que sustentava o serviço baseada na exploração do trabalho e no medo deste perder emprego por conta de atrasos que obrigavam o trabalhador a pegar qualquer transporte que o levasse pro emprego reduziu bruscamente com o aumento do home-office e do desemprego sistêmico, o sistema de ônibus viu reduzido sua maior fonte de coleta de passageiros. Junta essa redução, com a necessidade de mais manutenção na frota, que já é antiquada, e que parada não gera lucro, o que estava ruim piora.

Basta vermos o nome de um ou dois dos sócios da Viação Acari: Cassiano Antônio Pereira. — Sócio das empresas de ônibus do Grupo Rubamérica, Cassiano Antônio Pereira figura também como representante da Terceiro Tempo Assessoria e Marketing Esportivo, reconhecida oficialmente desde 2005 pela CBF como intermediária na negociação entre clubes e futebolistas. Outro: Valmir Fernandes do Amaral — Sócio em Viação Ponte Coberta, Expresso Nossa Senhora da Glória, Gardel Turismo, entre outros negócios.


Como acontece com a maior parte das falências deste tipo de serviço, quem perderá são os trabalhadores da empresa e a população mais pobre que de alguma forma dependia das linhas e hoje se vê na incógnita de saber se elas serão mantidas ou extintas. Seus donos certamente seguirão por aí, levando os recursos adquiridos nos anos de exploração dos serviços de transporte para outros locais e mantendo suas relações de negócios com os donos da cidade, nada diferente do que é uma família Barata.

Rotas das linhas da Viação Acari saindo dos Subúrbios em direção ao Centro.

22 de abril de 2021

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SALVE JORGE, SALVE O BRASIL, SALVE QUINTINO, SALVEM OS SUBÚRBIOS CARIOCAS!

 Dia 23 de abril de 2014, Quintino se veste de vermelho, fecha a rua, dança, solta fogos e canta.

O povo se reconhece no São Jorge por suas lutas diárias.
Esse é nosso Subúrbio Carioca no suor, na fé, na esperança, na cultura popular e na ancestralidade. Somos muitos formando o chão que a gente pisa e vive com o suor do trabalho estampado no rosto.
Neste Brasil, terra de todos os encontros, São Jorge encontra suas muitas faces: O Jovem, não mais tão jovem, que sente saudade de sua geral onde via Assis trazendo a Guanabara e que sincretismo belo seria a encruzilhada entre Assis e Zico em um só. Também é o jovem que sobrou na aeronáutica mas pega sua bike e sua mala e rasga Rio a dentro em suas entregas. A lojista que precisa enfrentar diariamente as armadilhas que o machismo estrutura na terra. O motorista de aplicativo que de tanto tomar nota baixa está sendo obrigado a fazer cansativas corridas que pouco dinheiro dá, mas se conseguir o suficiente pra comer um podrão no fim da noite está feliz. São Jorge é um moto-taxista na esquina da Clarimundo de Melo com a Saçu.
Jorge em seu cavalo é Maria no BRT, caminhando pelo vale do combate entre a incerteza da doença e a fé e esperança de que vai voltar da labuta e ver a filha se formar um dia. São muitos, como muitos são os Jorges do Brasil, na poesia, no ponto, no toque do tambor, na voz do pastor que não professa a fé mas ama seu irmão que professa, porque o Jesus que Jorge da Capadócia e o Pastor Jorge da Igreja Batista de São João de Meriti conhecia nos ensinou a importância do amor e da partilha. A fé não é algo que se julga, é algo que se admira, admirem-na!
São Jorge não é sobre crença, não é sobre fé, São Jorge é sobre Povo. Não preciso nem olhar para o invisível, pois a beleza está no visível mesmo, de um povo que se faz povo, de um deserto que vira dia de encontro. Este ano o encontro será no invisível, no virtual, mas isso não é problema pra quem caminha nos muitos mundos.
Nos subúrbios é assim, a gente nem sabe muito bem como ou porquê, mas estamos neste lugar onde o guerreiro e o ferreiro se confraternizam. A pobreza na nossa frente não intimida, ela é apenas nosso campo de batalha diário e armas de fogo não vão nos alcançar, mesmo que estejam passando lado a lado de nós.
Quem disse que a nossa bandeira nunca seria vermelha não conhece nada do Brasil, nunca pisou em Quintino num dia 23 de Abril, nunca viu Flamengo ser campeão brasileiro, são pessoas tristes que podem até passar uma vida sem entender a beleza de um bom feijão na panela, Deus tenha misericórdia delas um dia.
O corpo pode estar moído pelas batalhas, estar combalido pelo combate, mas não estará vencido, no dia ou na noite, mas os caminhos estão lá e os que nos odeiam não nos alcançarão. É esta fé que se faz o abrigo do Brasil profundo, dos que têm a fé aos que fazem a fezinha.
Aos que professam ou não a fé
SALVE JORGE,
SALVE O BRASIL,
SALVE QUINTINO,
SALVEM OS SUBÚRBIOS CARIOCAS!
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Reflexões sobre a autoprodução na construção do espaço no Brasil

Um debate que sempre ronda a vida profissional e política de um arquiteto ou engenheiro gira em torno do tema da autoconstrução ou autoprodução . Bom, primeiro, uma explicação simples sobre (que não explica tudo): no senso comum do ambiente profissional, a autoconstrução é toda construção que não contou com um profissional técnico capacitado, como um arquiteto, um engenheiro ou técnico. No senso comum da vida é a obra que você fez na sua casa contando com a ajuda de uma equipe de pedreiros, ou com a ajuda do vizinho que sabe virar a massa.

Também ecoa no senso comum profissional que este debate passe predominantemente pelo desconhecimento da população em relação ao papel profissional do arquiteto e engenheiro. Esta leitura leva a um sistema de tentar coibir processos como este por diversos meios, entre eles, dois são os instrumentos mais pensados. Buscar estas obras e cobrar que estejam com profissionais regulamentados (em geral isso é feito via órgãos institucionais como denúncias em autarquias de categoria profissional ou órgão municipal fiscalizador), e também é feito por uma constante proposta de divulgação e disseminação do papel de profissionais como arquitetos e engenheiros na sociedade. Entendo que todos os meios são importantes de considerar, porém entendo também que esse debate sobre autoconstrução não passa apenas por estes, como se a questão do construir fosse motivada apenas pelo desconhecimento das profissões técnicas envolvidas. 


Uma experiência que a vivência como arquiteto na indústria me trouxe foi que diante de um problema, não focar apenas no fato principal que aparece, mas em todo o encadeamento de detalhes e relações que permitiram que o fato acontecesse. Quando o foco passa a ser o desencadear das coisas na busca de propor melhorias e não a busca de um elemento causador (erro humano, ou fato, ou peça) nós conseguimos produzir soluções muito mais significativas para que a situação indesejada não aconteça mais. - essa é uma premissa importante de conceito de inovação. Esse tipo de olhar é o que por exemplo garantiu o salto significativo no avanço da biossegurança, na indústria aeronáutica, farmacêutica ou nuclear. 


Voltando ao exemplo da indústria. Se um acidente acontece podemos simplesmente prender ou culpabilizar o piloto ou o defeito em uma peça (na aviação) ou no caso da farmacêutica dizer: o tanque de pressão explodiu, mas não é o que acontece, o que ocorre são estudos detalhados que muitas vezes demoram anos e que geram documentos gigantes com uma série de desencadear de acontecimentos. A partir destes estudos se proporcionam documentos, novas normativas, estratégias de ação e novas tecnologias.


Qual o paralelo disso na nossa questão?  


Bem, a discussão da autoconstrução não vai se resolver ou se esgotar sem que a gente investigue a fundo o desencadeamento das condições que permitem isso. Segregação, desigualdade, baixo contato do profissional graduado com a massa da população, diferença de valor do solo e valor imobiliário que é brutal, entre muitos outros fatores que podemos trazer.


Podemos partir do tão conhecido dado que diz: 80% das pessoas que constroem, o fazem sem auxílio de um profissional. Junto com este dado apresentado vamos pensar sobre mais estes outros números:  Somos 197841 arquitetos no país (com quase 70% concentrados no eixo sudeste/sul), somos 211 milhões de brasileiros (dados de 2019). Só com estes dados já temos um detalhe importante: somos, grosso modo, um arquiteto para cada mil brasileiros (um pouco mais). Mais um dado importante para esta conta está no valor imobiliário. Hoje no Rio-capital temos imóveis na zona sul da cidade custando 21.000,00 reais o metro quadrado, enquanto na Zona Norte temos regiões com valor de 2.000 reais o metro quadrado. Quando colocamos na conta as áreas informais a discrepância dos valores por metro quadrado aumentam mais. Isso afeta diretamente muita coisa, como por exemplo o peso do valor de uma hora técnica em relação ao valor de um imóvel será sentido de forma diferente pelo proprietário de um imóvel no Leblon ou um imóvel na Pavuna.




Os dados mostram que a situação comum/padrão no país é a autoconstrução, nós somos a situação rara, qual nosso objetivo? modificar esse quadro e termos auxílio técnico atendendo de forma universal a todos os brasileiros.

Juntando tudo isso, entendo que um caminho possível passa por uma investigação ampla, minuciosa e permanente do que compõe a materialidade e a subjetividade por trás dos modos de construir e habitar o espaço no Brasil. Isso não é tarefa fácil, não será resolvida num braço só ou em poucos braços e poucos minutos, horas ou dias e muito menos sem interdisciplinaridade (interdisciplinaridade mesmo!). Muito dessa investigação já acontece por aí, pesquisas, ações autônomas, políticas interessantes são propostas.  A meu ver, a saída se dará neste caminhar constante e permanente em busca das melhorias. 

Pensar a questão da produção do espaço com amparo técnico em um país diversificado como o Brasil é tarefa complexa e exigirá de nós esforço de compreender as muitas especificidades locais, e a inter-relação entre as escalas do indivíduo, comunitárias, territoriais. Uma política estruturante para o país precisa considerar estes e outros fatores como fomento a interiorização do profissional técnico, ampliação da participação profissional na concepção e produção do espaço para a inclusão de outros saberes como os do antropólogo, do sociólogo, dos filósofos e dos poetas, no fundo, de toda a população. 



Descentralizar as políticas e garantir autonomia de quem se organiza nas bases dos territórios, sabendo distribuir as responsabilidades e limitando claramente as interfaces na construção política. O estatuto das cidades, por exemplo, foi um grande avanço na forma de produção do espaço nacional, esbarrou na pressão e lobby das construtoras cujo cálculo é simplista e limitado pela necessidade do lucro corrompendo tudo que vem do chão do povo. Ainda assim o estatuto das cidades é um importante ponto de partida para ser retomado e trabalhado novamente pelas bases da sociedade.


Traçar as saídas é a tarefa, e como qualquer política elaborada para funcionar no Brasil, não pode ser reducionista. Esta é a diferença por exemplo do sucesso do Sistema Único de Saúde mesmo com todo o esforço que parte da elite tem em desmontar e o fracasso da política de segurança, que no Brasil se baseia em incursões isoladas e prisões que em nada modificam a estrutura do sistema, ao contrário só corrompe mais. Prender um jovem com um baseado, ou inaugurar um conjunto de casas carimbo no meio do nada são um canto da sereia, pois viram notícia de jornal, dão mídia e holofote. Uma política bem pensada por sua vez não garante isso, pois em geral é um trabalho muito mais coletivo e num tempo ampliado até que comecemos a sentir o impacto. É uma pena que a cultura política do Brasil menospreze essa lógica e prefira correr atrás de soluções mágicas e simples, que da mesma forma da cloroquina, podem não servir para nada além de virar notícia de jornal.


Assim, a principal conclusão que vejo é: temos de aprofundar constantemente o debate, as experiências, os modelos, as testagens e os olhares. Não nos atermos a cair na vala comum que enxerga apenas dois lados da moeda no qual ou se romantiza ou se pune, pois diante da complexidade temos de experimentar todas as faces de investigação para chegarmos a melhor maneira de democratização do acesso técnico no Brasil