20 de julho de 2018

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Os caminhos do urbano brasileiro

Podemos considerar que um grande legado para o urbanismo, nas últimas décadas, foi a implementação do Estatuto das Cidades por lei  no 10.257, de 10 de Julho de 2001, assinado por Fernando Henrique Cardoso, [completando neste mês 17 anos] e a  criação, no governo Lula, do Ministério das Cidades em janeiro de 2003 e da Lei nº 11.888, de 24 de Dezembro de 2008 que garante o direito pleno a assistência técnica pública e gratuita para habitação social. Embora as políticas públicas previstas e defendidas por inúmeros movimentos de luta urbana tenha sido em um primeiro momento abraçadas pelo Ministério, eem um segundo momento foram paulatinamente sendo desconfiguradas no decorrer de anos de conciliação com os poderes instituídos para manutenção da governabilidade. Ainda assim, a lei que regula o uso da propriedade urbana para fins coletivos, consolidando o direito previsto em constituição pode ser considerado um importante passo, se visto como princípio de entendimento do território como um direito de todos.

Ainda que o tempo presente leve muitos de nós a acreditar e naturalizar o direito à propriedade pela lógica comercial (somos donos de nossos terrenos), nos cabe lembrar que esta lógica é recente no Brasil. Cabe lembrar que até o ano de 1822, o domínio sobre toda a propriedade e terras do Brasil pertencia ao Rei, e este distribuía conforme seu interesse o direito à posse. Com o advento da Lei de Terras, inicia-se um primeiro passo a lógica da propriedade como objeto passível de compra e venda, porém, a mesma não revoga ou reestrutura a distribuição das terras já implementadas nos tempos das sesmarias. Desta maneira, a lógica da propriedade se inicia de forma desigual: Quem já estava assentado pela posse concedida pelo Rei conseguiu regulamentar a posse como propriedade, e àqueles que não possuíam terras passariam então a ter o direito mediante compra. O caráter desigual que se representava pela lógica real apenas se transformou para uma lógica capital. Podemos considerar que se inicia ali um grande negócio que perdura até os dias de hoje, com a geração de riqueza através da especulação da terra.

Muitas modificações ocorreram desde então, mas poucas delas (ou talvez nenhuma) afetaram a raiz do problema: A resolução da distribuição desigual implementada pela coroa real que em um curto momento se transforma em riqueza adquirida para poucos afortunados.  

Nos dias contemporâneos passamos por um peculiar processo de produção de riqueza similar. Com a lógica dos megaempreendimentos geradores instantâneos de riqueza, seja pelo solo criado desde o aumento de gabaritos a procedimentos, seja por mudanças de grandes estruturas urbanas, como inserir vias expressas no subterrâneo para ganhar a superfície como terreno. Uma nova lógica também vem se consolidando, e seguindo as novas caras do capital: a terceirização do controle do território.

Podemos pensar em um neologismo: condominização da vida. Esta lógica que pode ser encontrada desde os processos de Operação Urbana Consorciada (como no caso do Porto Maravilha no Rio de Janeiro), passando por condomínios fechados como modelo de moradia associados a shopping centers como modelos de lazer, e chegando nas classes médias baixas através da lógica de fechamentos de ruas por cancelas ou de processos de favelização. Vale ressaltar que as cidades construídas segundo modelos de privatização do espaço público, estruturadas em formas condominiais se torna cara e inviável, mantém a segregação e o ciclo vicioso do encastelamento e do medo do urbano.

As novas formas de articulação do espaço urbano, por sua vez, continuam a manter o alinhamento do processo histórico da distribuição desigual do território.  As terras, cada vez mais escassas obrigam aos poderes que por ela se interessa a mobilizar subterfúgios. A especulação cria solo, avança para áreas de proteção ambiental, propõe aumentos de gabarito sem que estes passem por um estudo prévio e real do impacto ambiental, entre outros.

           O decorrer histórico nos faz perceber que talvez apenas através da mudança das lógicas de constituição e ocupação dos territórios poderemos iniciar um processo democrático sobre a terra (seja ela rural ou urbana). É preciso entendermos o território como um bem comum. Elementos como o fortalecimento dos planos diretores participativos, execução da garantia da função social do imóvel, entre outros se tornam primordiais em uma tentativa de construir esta democracia territorial que será tão gratificante a todos os cidadãos envolvidos, direta ou indiretamente. Neste sentido, é preciso avançar mais, tanto nos instrumentos quanto nas lutas pelo uso deles. O direito a cidade é um direito universal, que pode ser democratizado com o fortalecimento da compreensão do profissional de arquitetura e engenharia como um ente público e popular, assim como, com o fortalecimento das lutas por moradia e terra. 


10 de julho de 2018

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A cidade contemporânea escapa de nossas mãos

        O urbano contemporâneo, resultante histórico de um grande processo de industrialização e constantes mudanças nas forças de mercado, parece ter consolidado uma lógica própria de avanços de seu tecido. Como bem observou Lefebvre, podemos dizer que a cidade se transforma em uma não cidade. Falamos  aqui de um tecido urbano que cresce em função deste novo modo de produção que se abre com o processo industrial.

        A hegemonia de um tipo de espaço que se desenvolve a partir da instalação fabril busca em primeiro lugar estar próxima das fontes de recursos naturais de sua produção e em segundo lugar [necessitam de] (ter) um caminho ágil de escoamento de sua produção. Falamos aqui de um tipo urbano que começa a privilegiar a velocidade e o movimento em detrimento do encontro  cotidiano e das pausas. 

          Ferrovias, grandes rodovias, portos, aeroportos são a menina dos olhos na relação entre os arquitetos e urbanistas e engenheiros e as estruturas de poder. Curiosamente, o mundo periférico, em uma tentativa de alcançar tardiamente este processo de desenvolvimento do capital, muitas das vezes optam por construir suas cidades favorecendo esta logística, na esperança de que as redes do capital se instalem em seus territórios. 

      O capital produtivo que se desterritorializa na sua produção, busca territórios de extração de sua matéria prima, aquíferos como no caso da América Latina, Petróleo como no caso do chamado Oriente Médio, metais e pedras de mineração como no caso da África Oeste.  

        Quando os avanços e a inovação dos modos de produção eclodem no modo toyotista, a logística se fortalece ainda mais como conceito fundamental para o funcionamento do sistema. Não precisamos mais de um centro, mas produzimos em redes que se conectam pelas teias formadas por este processo inicial.

        O extrativismo que formou a riqueza de alguns dos reinos e nações de poder subjugara material e simbolicamente povos conquistados (colonizados). É material o interesse da escravidão de povos do continente africanos que tinham perícia na extração de minérios e lida com a ferragem para levá-los a américa latina (lembramos que o Ogum de hoje é ferreiro e forjador), é simbólico a construção do racismo ao apagar a potência material destes que eram trazidos a força e decretá-los como um ser humano de menor estirpe diante da branquitude europeia. Lembremos que todos os processos de escravidão que existiram antes deste momento compreendiam o subjugo entre povos sem a distinção do fenótipo.

          A construção simbólica da sociedade urbana também ampara questões como o exótico, destinado a todos aqueles que não representavam o padrão (neste momento europeu, em um momento futuro inclui-se o Norte Americano). É este subjugo histórico e cultural que leva a indústria do miojo a adentrar em países africanos como um alimento elitizado e que leva os mesmos a trocar de seus pratos o arroz por este.

        O sistema atual de produção de riqueza alcança nos dias de hoje um novo patamar através do modelo de financeirização, cujos fluxos se tornam infinitamente mais velozes que os anteriores. De certa forma todos estes modos de produção coexistem no globo e se entrelaçam. Uma das consequências é o enfraquecimento de um território vivido e público, a vida adentra em espaços controlados, como sugere Koolhaas em um de seus famosos ensaios. Esse novo tipo de espaço nos isola de inúmeros bens comuns como o sol, os mananciais, o tempo de contemplação e dos espaços construídos que permitem as fugas e encontros do acaso e do imponderável. Também é este tipo de espaço que invisibiliza a gama de cidadãos que fazem eles funcionarem. Projetamos corredores técnicos por onde passam os trabalhadores da limpeza, pavimentos técnicos por onde passam os trabalhadores da manutenção ou elevadores de serviço.

        Para que o novo modo de produção funcione e se mantenha ele cria um novo tipo de periférico, lançando a própria sorte aqueles que não estão incluídos. Assim que uma classe média Síria se transforma em um não cidadão alojado em algum acampamento provisório na Jordânia ou um venezuelano em um acampamento em Roraima. O capital que se espalha pelo globo com o toyotismo e que hoje transforma em puro fluxo diante da financeirização, territorializa os periféricos que viviam em espaços de grande matéria prima para sua produção. O imigrante se transmuta no outro, aquele que não queremos nas nossas cidades, capitais da beleza, das normas e da cultura.
        
        O exótico é cool quando o outro permanece no próprio território, independente das mazelas que o poder que hegemoniza o globo cause neste território. Quando o outro, no desespero de sobreviver a estas mazelas, tenta fugir para os territórios que se sustentam pelas mazelas criadas ele se torna um problema: O imigrante.

       Qual a solução que se apresenta? Estrategicamente a construção de territórios de exceção, verdadeiros campos de acumulação de pessoas, o imigrante, o exótico, o outro se torna o refugiado. Uma rápida percepção do crescimento do campo de Za’atari já demonstra esta nova cidade que escapa as nossas mãos, uma singular forma de exploração do corpo humano na era da financeirização. Há uma tênue linha de paralelos entre a Senzala, os Gulags, os Campos Hitleristas, Guantanamo e Za’atari, a linha onde o outro é subjugado para que os poderes hegemônicos se mantenham hegemônicos.

         Porém, há também novas formas de resistência tática que nascem junto a este processo: praça Tahrir, Occupy, no brasil temos as ruas em 2013, em 2018 o repúdio ao assassinato de Marielle, a greve dos caminhoneiros que parou o país, entre muitas outras manifestações. São explosões táticas que surgem como um contra-poder e que em pouco tempo são massacradas pelos poderes hegemônicos. Estes por sua vez, se tornam cada vez mais totalitários na busca de sua manutenção. Nos importa ponderar que o palco destas lutas em muitos casos é o urbano, apesar de termos lutas nos territórios em seus matizes.
Campo de Za'atari - fonte: época - 04/05/2016 -
por:Teresa Pedrosa -
 https://epoca.globo.com/tempo/noticia/2016/05/vidas-intermitentes-como-vivem-os-refugiados-sirios-no-maior-campo-do-oriente-medio.html