Podemos considerar que um grande legado
para o urbanismo, nas últimas décadas, foi a implementação do Estatuto das Cidades
por lei no 10.257, de 10 de
Julho de 2001, assinado por Fernando Henrique Cardoso,
[completando neste mês 17 anos] e a criação, no governo Lula, do Ministério das
Cidades em janeiro de 2003 e da Lei nº 11.888, de 24 de Dezembro de 2008 que
garante o direito pleno a assistência técnica pública e gratuita para habitação
social. Embora as políticas públicas
previstas e defendidas por inúmeros movimentos de luta urbana tenha sido em um
primeiro momento abraçadas pelo Ministério, eem um segundo momento foram paulatinamente sendo desconfiguradas no
decorrer de anos de conciliação com os poderes instituídos para manutenção da
governabilidade. Ainda assim, a lei que regula o uso da propriedade urbana para
fins coletivos, consolidando o direito previsto em constituição pode ser
considerado um importante passo, se visto como princípio de entendimento do
território como um direito de todos.
Ainda que o tempo presente leve muitos
de nós a acreditar e naturalizar o direito à propriedade pela lógica comercial
(somos donos de nossos terrenos), nos cabe lembrar que esta lógica é recente no
Brasil. Cabe lembrar que até o ano de 1822, o domínio sobre toda a propriedade
e terras do Brasil pertencia ao Rei, e este distribuía conforme seu interesse o
direito à posse. Com o advento da Lei de Terras, inicia-se um primeiro passo a
lógica da propriedade como objeto passível de compra e venda, porém, a mesma
não revoga ou reestrutura a distribuição das terras já implementadas nos tempos
das sesmarias. Desta maneira, a lógica da propriedade se inicia de forma
desigual: Quem já estava assentado pela posse concedida pelo Rei conseguiu regulamentar
a posse como propriedade, e àqueles que não possuíam terras passariam então a
ter o direito mediante compra. O caráter desigual que se representava pela
lógica real apenas se transformou para uma lógica capital. Podemos considerar
que se inicia ali um grande negócio que perdura até os dias de hoje, com a
geração de riqueza através da especulação da terra.
Muitas modificações ocorreram desde
então, mas poucas delas (ou talvez nenhuma) afetaram a raiz do problema: A
resolução da distribuição desigual implementada pela coroa real que em um curto
momento se transforma em riqueza adquirida para poucos afortunados.
Nos dias contemporâneos passamos por um peculiar
processo de produção de riqueza similar. Com a lógica dos megaempreendimentos
geradores instantâneos de riqueza, seja pelo solo criado desde o aumento de
gabaritos a procedimentos, seja por mudanças de grandes estruturas urbanas,
como inserir vias expressas no subterrâneo para ganhar a superfície como
terreno. Uma nova lógica também vem se consolidando, e seguindo as novas caras do
capital: a terceirização do controle do território.
Podemos pensar em um neologismo: condominização
da vida. Esta lógica que pode ser encontrada desde os processos de Operação
Urbana Consorciada (como no caso do Porto Maravilha no Rio de Janeiro),
passando por condomínios fechados como modelo de moradia associados a shopping
centers como modelos de lazer, e chegando nas classes médias baixas através da
lógica de fechamentos de ruas por cancelas ou de processos de favelização. Vale
ressaltar que as cidades construídas segundo modelos de privatização do espaço
público, estruturadas em formas condominiais se torna cara e inviável, mantém a
segregação e o ciclo vicioso do encastelamento e do medo do urbano.
As novas formas de articulação do espaço
urbano, por sua vez, continuam a manter o alinhamento do processo histórico da
distribuição desigual do território. As
terras, cada vez mais escassas obrigam aos poderes que por ela se interessa a
mobilizar subterfúgios. A especulação cria solo, avança para áreas de proteção
ambiental, propõe aumentos de gabarito sem que estes passem por um estudo
prévio e real do impacto ambiental, entre outros.
O decorrer histórico
nos faz perceber que talvez apenas através da mudança das lógicas de constituição
e ocupação dos territórios poderemos iniciar um processo democrático sobre a terra
(seja ela rural ou urbana). É preciso entendermos o território como um bem
comum. Elementos como o fortalecimento dos planos diretores participativos,
execução da garantia da função social do imóvel, entre outros se tornam
primordiais em uma tentativa de construir esta democracia territorial que será
tão gratificante a todos os cidadãos envolvidos, direta ou indiretamente. Neste
sentido, é preciso avançar mais, tanto nos instrumentos quanto nas lutas pelo
uso deles. O direito a cidade é um direito universal, que pode ser democratizado com o fortalecimento da compreensão do profissional de arquitetura e engenharia como um ente público e popular, assim como, com o fortalecimento das lutas por moradia e terra.