13 de fevereiro de 2020

Parasita e distopias de um mundo presente

Muitas são as entradas possíveis para debater sobre um filme da densidade do principal vencedor do Oscar. O que buscarei aqui são reflexões que transversam e flertam com o filme, e não necessariamente sobre o filme. O primeiro marco que sinto reside no universo distópico de Parasita.

A distopia está no tempo presente.

A temporalidade trazida retrata um mundo contemporâneo cercado de suas mazelas e disparidades sociais. Mundo este no qual a arquitetura atua como paisagem e personagem coadjuvante. Mas para não entregar o filme, não falemos das arquitetura do mesmo, porém de exemplos paralelos que nos interessam. A tríade: condomínio-via expressa-shopping center que se reflete no aeroporto de Koolhaas, aqueles espaços estéreis de múltiplos seres, mas que escondem em seus subterrâneos e corredores técnicos a vivencia do trabalhador que sustenta o funcionamento do espaço. A distopia de parasita está ali dada. 

A representação.

Ao abdicar de suas verdades em busca de viver a partir da representação, os pobres se posicionam em uma auto-alienação cujo premio são algumas migalhas de conforto. A representação porém não salva o pobre de sua condição real, não o insere na outra camada social. O pobre alcança no máximo uma familiaridade que é restrita aos serviçais mais próximos a casa-grande. 

A idolatria ao arquiteto, ou ao dono da casa grande não insere o ser real do pobre no círculo privilegiado, no máximo, o inserido é o personagem representado. Personagem este que diante da catástrofe entra em pausa para que a verdade da vida real assuma seu lugar em meio a todas as perdas. O dualismo que tensiona entre o personagem (representação) e o ser real tem sua ruptura em um desfecho de explosão visceral.

A consciência de classe.

A busca incessante que temos pela construção da consciência de classe também tem sua crítica marcada no filme, onde a diferença de classe se torna clara. Porém a diferença que leva ao desfecho não cria a visão de mundo através de um processo -digamos- civilizatório e cartesiano de construção desta consciência. A relação de classe é sentida na pele, expressada por instintos básicos dos sentidos humanos. Sentidos estes que se elevam diante da pressão envolta na desumanidade dada aos que levam a vida em um porão. O pobre é elogiado por conseguir se manter no seu lugar, no seu espaço, porém mesmo que conscientemente se mantenha, sua carne incomoda, vaza para o espaço que não lhe convém ocupar pois pertence ao hospedeiro.

O filme apresenta com força o que é a dificuldade exponencial do pobre em sobreviver diante da facilidade que eventos trágicos tem de tirar suas poucas posses. A barraca de brinquedo da criança que resiste diante do mesmo cataclismo que torna inúmeros moradores da cidade flagelados é um recorte belíssimo dessa narrativa. Ao pobre resta ser tático para se manter sobrevivendo enquanto a vida e liberdade pertence ao seu hospedeiro.

Parasita fala de classes, as lutas e diálogos porém são retratadas através das vísceras. O olhar sobre esta relação de classes e a obra me remete a uma frase de Bruno Latour “É preciso combater a ideia de que existe por aí um dicionário do qual todas as palavras dos atores possam ser traduzidas nos poucos verbetes do léxico social”. Não há um plano que dê certo.

A barraca, a casa, o porão, as ruas e escadas, o sol e a sombra, cada detalhe retrata a proximidade deste mundo distópico ante da nossa realidade. Uma distopia que passa diretamente sobre o urbano e a arquitetura e que me fazem questionar: como é o mundo de parasita nos corredores técnicos dos shopping centers, como é o mundo de parasita no universo dos moradores sem teto e flagelados que dormem em nossas esquinas, nos aeroportos e outros espaços similares. Se antes estes eram invisíveis simbolicamente e politicamente, as novas cidades estão tentando torná-los invisíveis também espacialmente, em uma vida de labor em entrepisos, corredores de acesso e similares. 

Uma coisa porém me assustou em termos de arquitetura. Diferente do Brasil, onde até pouquíssimo tempo toda residencia projetada possuía um caminho separado de entrada das empregadas (as mesmas que não devem ir a Disney). Em Parasita, os pobres podem acessar a casa grande pela entrada principal.

É possível que nossa distopia cotidiana brasileira esteja anos luz a frente na desumanidade, porém é possível que estejamos domesticados, tão domesticados quanto quem já assimilou com normalidade comprar água da Nestlé para beber ou espera em um porão sem sol o momento ideal de sair novamente pra vida. 


A questão é esta: como podemos nos reagregar em meio a novo tempoo presente?