7 de julho de 2020

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Novos ou velhos normais

O Brasil segue sua luta diante da maior crise sanitária e humanitária dos últimos tempos. Se por um lado as camadas da sociedade tenderam a buscar saídas pelo raciocínio nós por nós, por outro lado, o padrão implementado pelo governo busca a cada novo ato ratificar a negação da doença. Esta queda de braço porém começa a dar indícios de chegar no seu limite de estafa.

O projeto do governo demonstra pequenas vitórias, que para a população são grandes derrotas:

A desestabilização popular em relação a crença na doença e aos cuidados a se tomar,

A demora na liberação dos recursos da renda mínima emergencial e os inúmeros processos de falha de implementação,

A não integração dos leitos de hospitais privados no sistema de integração do SUS,

A falta de transparência na liberação dos dados de infectados e óbitos no país,

A tentativa de acabar com a pandemia por decreto.

São estas algumas das movimentações que permitiram ao governo federal investir em seu projeto que a grosso modo se resume em entregar o povo ao revés ou sorte diante da doença. Soma a isso o retorno ao chamado Novo Normal que no Brasil seguirá desvinculado com a redução da curva das doenças. De fato o que mobiliza a ideia de novo normal não é a redução do contágio, mas sim o fato de ter ou não vaga em UTI (como se o Normal fosse estar em UTI).

O Novo Normal tem criado situações das mais escabrosas diga-se de passagem. A ode ao carro por exemplo muito bem representada no sistema drive-thruu implementado por um Shopping Center de São Paulo, que nega completamente qualquer sentido lógico do campo da arquitetura ao instaurar que o Mall se torne carroçável. Em nome de um simbolismo estranho e panfletário o shopping propõe sua abertura extremamente antieconômica. Pense que qualquer mall de shopping não é feito para tráfego de automóveis, seus pisos cerâmicos, sua estrutura fechada com ventilação mecânica recebendo doses de CO2, e o próprio gasto que envolve rodar de automóvel dentro do espaço para fazer pequenas compras. O shopping reflete bem o conceito de quem busca este Novo Normal da economia e tenta inseri-lo nos velhos normais do capital (a hegemonia do carro é um fator simbólico interessante disso).

Não obstante, cito outras situações anacrônicas se seguem, como o retorno dos jogos do Campeonato Carioca, que vem sendo apelidado de Covidão. Vale lembrar que um dos poucos hospitais de campanha que foram construídos no Rio está ao lado do Maracanã. Em um mundo onde as olimpíadas foram adiadas, o Rio deliberadamente considerou importante o retorno sem público do seu já desprestigiado Campeonato Estadual. Enfadonhas partidas se realizam em um movimento protagonizado pelo clube de maior torcida da cidade. Uma triste mancha na história deste clube que no ano anterior conseguiu retomar a simpatia de imensa parte da população mediante suas conquistas nacionais e internacionais. A tragédia se amplifica a medida em que, a cada novo jogo, remetem-se minutos de silêncio em homenagem às vítimas do COVID e manifestações de apoio às lutas antirracistas. Nisso o campeonato segue como um novo normal sem política de mitigação da pandemia, no país onde o perfil da maior parte das vítimas do COVID são justamente as vidas negras pelas quais os jogadores se manifestam.

O novo patamar da história surge com a reabertura dos bares que apesar das regras de segurança existirem, parecem não ser cumpridas. Tragicamente, as aglomerações vistas no Leblon ( um dos endereços das elites brasileiras) são reflexo de um conceito de humanidade que pouco se percebe como parte de um todo. Este mesmo tipo de aglomeração não se restringe ao Leblon. inúmeros bairros que ficam invisíveis aos olhos midiáticos, por não ter a mesma elite nela talvez, passaram todos os dias do isolamento social como se nada tivesse ocorrendo, bares, festas e ruas lotadas não são tão raras para quem mora nos subúrbios por exemplo.

As lutas concretas por sua vez também parecem abaladas, ficamos presos em frentes, tentativas de traçar planos e projetos, sem que houvesse uma saída clara ali a frente. As pautas da construção política parecem ainda viver em função de um Novo Normal que é um Velho Normal, como se muitos de nós tentássemos enquadrar nas soluções das décadas de 90 e no início dos anos 2000 a 2018 os caminhos para um porvir.

Não porém só derrota nas lutas, vemos pequenas vitórias acontecendo a cada nova rede, encontros, saídas pelas múltiplas conexões, que vão de fãs de kpop a entregadores de aplicativos, mas que dependem de que os próprios muitos movimentos e redes se tornem mais orgânicos na sociedade. A saída a meu ver vai passar pela heterogeneidade deste modo antigo de se organizar as lutas misturado com as novas formas de lutas, em um campo onde as novas formas se tornam a cada dia hegemônicas. A saída a meu ver não passaria por escolher potencializar novos atores sociais, politizar youtubers, e nem apenas o famoso retorno às bases. A saída política passará por entender que estrutura é esta que permite estes espaços de luta e atravessarmos por estes espaços onde a lógica do influencer e a lógica da construção de base consiga delinear os campos de lutas.

Neste sentido vimos nascer:

Lideranças Insurgentes e orgânicas dos lugares atuando na construção de redes de solidariedade nós por nós,

Lutas antifascistas puxadas por torcidas organizadas de futebol,

Entregadores de aplicativos organizando greve nacional contra este sistema contemporâneo de exploração do trabalho,

Digital Influenceres assumindo papel de opinião engajada e ativista,

Fãs de Kpop articulando via redes o esvaziamento de comícios,

etc.

Constituir um Brasil não polarizado vai precisar compreender os muitos Brasis que o Brasil esconde. A brasilidade das disputas de vizinhança às lutas de classe. Os Brasis que sejam capazes de levar a discussão dos bares do Leblon para além do recorte: inocentes do Leblon x bom selvagens dos subúrbios por exemplo. Precisaremos romper com os limites e os espaços de brechas onde podemos pleitear o discurso crítico assimilar as novas ferramentas, ouvir os novos atores sociais para que tracemos novas saídas. O Novo Normal não vai ser o retorno aos Velhos Normais, e tudo que parece se construir assim está sendo rapidamente visto pela sociedade como pastiche.