27 de junho de 2021

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Desejo de Matar e as contradições do individualismo

Em 1974 estreou o filme Desejo de Matar estrelado por Charles Bronson, esta obra tem um impacto peculiar na cultura da gente. O eixo central fala de um homem comum que após ter sua casa invadida, sua esposa é assassinada e sua filha violentada. Paul Kersey, um arquiteto de ideias liberais com visão de mundo anti-armamentista, se transforma pouco a pouco em um vigilante das ruas. 

filme dá um pontapé numa massa de produções com enredos de valorização da cultura armamentista como ferramenta de proteção do cidadão comum. Apesar disso, não podemos reduzir o enredo deste filme específico a esta propaganda. Desejo de Matar está muito mais próximo de Um Dia de Fúria, filme onde um designer industrial explode seu stress com o modelo de sociedade e se vê emaranhado numa teia de problemas que se desencadeiam e piora quando este se arma, do que de filmes e franquias que se inspiram nesse modelo do homem comum armado resolvendo tudo.

Charles Bronson não é um herói, a única habilidade exímia de seu personagem é saber atirar, mas não é um atleta, não é um estrategista ou nada assim. Mas em que isso tudo nos importa? Simples, somos hoje em 2021 uma geração criada embebida na lógica das narrativas cinematográficas abertas por filmes como este. Uma corruptela do bom Desejo de Matar veio com sua franquia e com inúmeros filmes posteriores cujo personagem principal seguia o mesmo padrão: homem de meia idade armado resolvendo problemas que o Estado não foi capaz de resolver. Essa é a base de uma gama de filmes de Charles Bronson, Chuck Norris, Bruce Willis, Vin Diesel, etc.

Este, que é o eixo central do Desejo de Matar, também tem muito a nos dizer. O filme retrata como um homem comum com repulsa a armas, quando vê sua vida destruída pela incapacidade do Estado toma certas escolhas. O filme retrata de forma peculiar as possibilidades e contradições abertas por uma cultura armamentista e liberal podem gerar a busca pelo vigilantismo e punitivismo. Ver essa leitura nos ajuda a entender nosso dia a dia aqui também. Apesar de o Brasil não ter a mesma relação histórico-cultural que os Estados Unidos tem com o universo das armas de fogo, fomos moldados (inclusive por estes filmes) a normalizar a cultura das armas.

Um padrão em todos os filmes deste tipo, e também um certo padrão do mundo real, é que lidamos com um sistema de segurança ruim, falho, corrupto, — “esta cidade é assim”. Quando as pessoas comuns pensam em segurança o que desejam é proteção, e raramente encontram. O cotidiano de uma visão liberal da vida nos instiga e nos bomba com referências de que devemos fazer por nós mesmos. Nossa vida é um problema nosso apenas, temos que cuidar de nosso interesse individual, primeiro nos ajudemos para depois ajudar ao próximo, se batalhar consegue, somos bombardeados com modelos que centram no indivíduo a saída e no coletivo o problema. O que temos então? a chave certa para defender saídas não estatais para problemas de estado (como a segurança pública, por exemplo).

Este é o ponto que Desejo de Matar já nos apresentava. Qualquer pessoa comum que cresce em uma cultura que valoriza as soluções individuais pode perder sua fé nos sistemas institucionais e tentar uma solução por si. Os sistemas institucionais, por sua vez, limitados para resolver os problemas estruturais que geram a violência urbana, não conseguem dar cabo de resolver o problema da vigilância apresentada no filme sem utilizar de subterfúgios. A polícia não o prende para não criar um mártir e abrir o descontrole social, antes o incentiva a mudar de cidade. Nota-se também que, se em um primeiro ciclo de ações do vigilante, os criminosos atuam com armas brancas, já no fim, o vigilante é pego por criminosos que usam também armas de fogo.

O filme expõe um pouco do como funciona esse ciclo de violência urbana. Se num dado momento, a criminalidade parece reduzir porque o vigilantismo mudou a postura do banditismo, o fim do filme mostra que este ciclo permanecerá com uma qualificação do banditismo para reagir ao processo social. Quanto à proposta institucional para resolver o problema, o que se apresenta pelo filme é o famoso: jogar para debaixo do tapete o problema, incentivando o grande escritório onde o arquiteto trabalha a transferi-lo para outra cidade. O problema da violência não se resolve em momento nenhum, isso fica claro, assim como uma certa angústia ou crença do personagem principal.

No fim tanto a crença anti-armamentista que individualizada não impediu Paul Keyser de sofrer a violência que sofreu nem a possibilidade de punitivismo armamentista trouxe ao arquiteto a paz, ou a segurança ou a solução, o que parece ser seu vetor é apenas a descrença na capacidade de um sistema melhor. O que parece lhe dar um pouco de paz talvez seja o fato de ter se posto como essa cunha da contradição que obriga o sistema a rever seus caminhos. Os únicos momentos do filme onde o personagem comenta sobre seus motivos, em diálogo com o filho, deixa mais questões e dúvidas no ar do que motivações. É quase como uma escolha niilista enquanto cabe a sociedade dispor das teorias ou críticas sobre os fatos.

Entendermos isso é importante para entendermos como acontecem certos processos e pautas conservadoras que nos parecem contraditórias como por exemplo ser cristão e querer ter uma arma em casa ou o discurso de legítima defesa que alguns pregam. Este desejo equivocado se embasa nessa construção cultural de décadas de bombardeamento da cultura pop que aponta isso como solução somado ao problema material de não termos uma política de estado eficiente para lidar com a segurança pública. Este mesmo desejo acaba por relativizar e facilitar a criação de sistemas de poder paralelos, à medida que, no momento inicial, as lideranças locais destes são vistas como vigilantes de bairro a cumprir o papel que o Estado não consegue dar conta.

Desmistificar o armamentismo individual exigirá um esforço complexo que passa primeiramente pela garantia de um sistema policial e judiciário não corrompido e que tenha como diretriz a proteção ao cidadão. Segundo, precisamos recuperar o interesse coletivo em escala comunitária (rua a rua e bairro a bairro) para a solução de problemas e construção de propostas como aumentar o acesso a direitos básicos e redução da segregação social.

Para além disso, precisaremos de um processo de ressignificação desta parte da cultura pop que traça como bem sucedido e símbolo de sucesso o homem armado. O que pode até ser trabalhoso mas não tão difícil visto que essa propaganda tem como pano de fundo um recorte tipo homem de meia idade, que aparentemente não é o desejo de ser dos jovens. Mesmo jovens que hoje buscam se entender por uma identidade conservadora podem se colocar em contradição diante deste padrão. Lembramos dos tempos em que propagandas de cigarros retratavam sucesso, vida atlética, liberdade, refinamento cultural. Hoje, ainda se fuma, mas já não são massivos e associados a estes conceitos a quantidade de fumantes. Quem fica preso a este eterno retorno do passado como saída acaba por gerar espantalhos até que se transforme em um.

Conceitos de vida mudam porque somos seres com habilidades sociais, coletivas e mais importante de tudo reflexivas. São estas habilidades que nos permite buscar os melhores meios de ampliar nossa qualidade de vida, nosso tempo individual na terra, nossas produções coletivas e por aí vai. Para tal é preciso estarmos constantemente colocando nossas contradições sociais na mesa para propor caminhos melhores, mais coletivos e mais humanos.