4 de maio de 2021

, , ,

Crônicas de um Rio que bate a porta


O longo processo de constituição da cidade do Rio sempre foi embebido em uma disputa que tange o controle da cidade por poderes paralelos armados. O que vemos na atualidade é uma nova fase disso se organizando. Estamos a um passo de nos consolidar Como um milíciocidade.

Importante ressaltarmos que: o que chamamos de paralelos me parece um certo equívoco, pois há interfaces claras entre os poderes que assumem o controle de determinados territórios e os poderes legalmente constituídos para cuidar dos mesmos.

Já é de longa data, pelo menos lá pelos idos dos anos 90, que a cidade do Rio viu organizar em seu território, uma nova forma deste poder. Filhos culturais das chamadas polícias mineiras, as milícias começaram a ocupar espaços notoriamente esquecidos pelo poder público, e seguiram por ele atuando como agentes em resposta a esta ausência do Estado. Isso ganhou vulto a medida em que alguns fatores aconteciam. Entre eles, a mudança organizativa dos grupos de tráfico que começavam a esvaziar o sentido de pertencimento do lugar por parte dos seus grupamentos, o desmonte dos poderes do jogo do bicho e a redução da capacidade de vereadores bico d’água responderem sozinhos a todos os anseios dos bairros onde faziam base. Claro muitas outras linhas podem sair daqui, mas destacamos essas no momento.

Os parâmetros destacados forma uma boa tríade de cultura que se comunicava rotineiramente com o povo de diversos bairros suburbanos, sempre preteridos em políticas públicas de qualidade quando comparados a outros lados da cidade.

Para os poderes legalmente constituídos, realmente o início do sistema miliciano poderia ser visto com bons olhos, visto serem grupos oriundos de pessoas que trabalhavam em departamentos do próprio estado, como polícia, bombeiros, etc. Grupos estes que há muito são arraigados com as lógicas estruturantes de poder deste país. O resultado deste enlace foi um processo oficioso de terceirização do controle territorial por parte do Estado para estes grupamentos.

Outro entrelaçamento importante está no crescimento em especial dos movimentos neopetencostais, principalmente os assembleianos. Aqui cabe entender com clareza sobre que recorte estamos falando. A potencia de uso do movimento neopetencostal está na capacidade de pulverização e de autonomia que cada parte (um templo, uma igreja, uma roda de pregação) tem sobre si.

Diferente de igrejas mais tradicionais, onde há uma certa organização padrão, como acontece nos batistas, metodistas, etc, assim como igrejas com certa centralidade como a católica. O movimento assembleiano permite que cada igreja de forma independente e autônoma fale e pregue por si tendo como base o milagre dos pentecostes e dons espirituais. É importantíssimo ressaltar este elemento, pois é justamente por esta capacidade de horizontalismo e descentralização que o movimento permite que nasça dentro de si as mais diversas linhas de crenças, linhas ideológicas, linhas de conexão social, etc. Há um fenômeno por sua vez que não pode ser descartado, o poder das rádios e tvs em um processo de disseminação de uma determinada cultura. Qualquer pessoa que assistir programas das mais diferentes épocas do pastor Malafaia por exemplo, notará como sua pregação forma uma cultura e modos de agir.


Se um Silas mais Jovem condenara práticas da chamada teologia da prosperidade, um Silas dos anos 90 e 2000 a colocariam no centro do discurso. Porém uma coisa era comum, o efeito de blocos dos iguais. Vemos em algumas pregações a construção
 clara do hábito de se afastar das pessoas que pensam e vivem diferente. Frases de efeito sobre amigos possivelmente gentios que não te acrescentam nada, familiares, festas do mundo, entre outros. Silas alimenta Um movimento religioso que organiza o povo em torno de iguais que repudiam os diferentes.

A capilaridade que as igrejas construíram no vazio cultural e cívico que deveria seu ocupado também por teatros, praças, parques, cinemas. A cultura cotidiana de vidência e falta de perspectiva. A crise econômica e crise de representação e 0 excesso de incertezas nos ajudam a explicar parte do busca desesperada de um grupo de identidade. São estes algumas elementos que somados a evolução das práticas de controle territorial da cidade nos coloca hoje a beira de transformar parte significativa do município em território onde o estado se torna impotente.

Os jovens sem perspectiva, o cotidiano de poder das milícias e uma cultura cristã que inverte a ordem dos testamentos. Se a bíblia nos leva do Senhor dos Exércitos Ao Cristo da Graça, parte da liturgia cotidiana faz o Cristo da Graça ser o Senhor dos Exércitos contra o mal maior. Aqui temos uma corruptela que permite naturalizar o nascimento de movimentos armados que operam em nome do Senhor, com suas bandeiras de Israel empunhadas demarcando seus territórios de controle, expulsam todos aqueles que entendem que são ímpios ou inimigos. Um sistema que cresce articulando as forças milicianas, forças do tráfico internacional de drogas e armas e as forças religiosas. 



Vale Lembrar que este tipo de movimento não é exclusivo do grupo religioso em questão, ele é um padrão de sociedade vendido. shoppings center e condomínios fechados por exemplo são a venda desse desejo para o povo. As esquerdas também não escapam desta armadilha, quando promovem discursos como: lado certo da história ou do tipo sair do grupo de família por conta do parente conservador segue o mesmo padrão proposto por Malafaia incentivando seus fiéis a se afastar dos parentes que ouvem “música do mundo".

O mundo hiper individualista não nos responde, somos seres coletivos. 0 mundo condominial responde parte o anseio da coletividade, mas não resolve plenamente a sociabilidade ao nos colocar nos guetos invisíveis e imaginários. Os guetos nos confortam, estamos com nossos iguais, nos alivia da dor da incerteza, mas são imaginários.



A bandeira monarquista ou a comunista na estrada do Quitungo não diferencia as condições materiais onde por exemplo ambos os seus donos precisarão andar longas distâncias para pegar um onibus ou comprar um pão e a noite farão no escuro pois a iluminação do bairro parece do tempo de D.Pedro. Assim como a bandeira de Israel não dará a Jovem que empunha uma arma em nome de Deus, o poder de um Rei Salomão, nem mudará o fato de que os grandes financiadores seguirão vivos em suas mansões enquanto ele e os seus morrem ainda jovens. 

A saída não é fácil, exigirá um trabalho coletivo de reconhecimento de demandas e anseios, de romper com a segregação social que as narrativas em bloco criam, romper com o cercadinho condominial, entre muitas coisas. Boa parte do povo só quer viver suas vidas, sair e voltar pra casa em paz. Essa galera está só cansada da aporrinhação que todos trazemos no excesso de debates, militâncias e embates e de viver sob a ameaça constante dessas estruturas de poder que os cerca. 

Se por um lado, um Estado que queira resolver este problema precisará assumir com coragem uma briga com inúmeras forças que estão no interior deste estado, das corporações  batalhões até a casa de vidro. Pelo lado da sociedade civil, entendo que não haverá trabalho de retomada social capaz de ser resolvido sem passar pela escala familiar, comunitária para aí então chegarmos na municipal e estadual. Assim como considero impossível uma saída que não passe pela ruptura dos cercados sociais e pela volta do contato com o diferente. Sair dos discursos maniqueístas é fundamental, são base para retomar os sequestro social em que estamos enfiados. Qualquer coisa fora disso seguirá alimentando as lógicas de grupos e guetos que vivem da violência e do terror ao diferente.