4 de maio de 2018

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Somos Todos Miseráveis

Lembro-me dos tempos idos de faculdade onde várias vezes, em fuga do caos que era o curso de arquitetura me encampava na boa biblioteca da Faculdade de Letras da UFRJ. Lá conheci um pouco da importante produção humana de literatura, filosofia, da própria arquitetura. Entre os inúmeros autores e personagens, foi lá que descobri a existência de Nietzsche, Espinosa, João do Rio e Victor Hugo. Nesta biblioteca, nas estantes ao fundo ficavam os tomos de sua obra mais marcante: Os Miseráveis. Obra esta que recentemente retomei ao encontro (ainda que lentamente) por incentivo de co-produzir um artigo que talvez não consiga dar conta(maria, se vira ae).
Ter acesso a esta gama de obras literárias influenciaram muito meu modo de ver arquitetura, urbanismo e a cidade. Os últimos e trágicos acontecimentos foram de grande abalo devido o incêndio calamitoso de uma ocupação dos movimentos de luta pela moradia em uma edificação tombada pelo IPHAN. Arquitetura de qualidades reconhecidas como alguns estão demonstrando em suas comoções, mas que a anos estava subutilizada. Seu último uso social fora abrigar centenas de famílias para quem a fortuna da vida não sorriu.
As principais vítimas da tragédia são pessoas, representantes legítimos de um dos estratos sociais mais precarizados da sociedade paulistana; catadores de recicláveis, ambulantes, auxiliares de carga e descarga de mercadoria, entre outros. Em comum, a ausência da possibilidade de um teto e o infortúnio de serem parte de um país que não valoriza o direito constitucional a moradia no seu amplo sentido:
segurança jurídica da posse; disponibilidade de serviços e infraestrutura; custo de moradia acessível; habitabilidade; acessibilidade; localização e adequação cultural (PANSIERI, 2008: 51) citado por Hugo Garcez Duarte em — Dignidade da pessoa humana e direito à moradia: reflexões frente ao conceito de Estado Democrático de Direito
Em meio a todas as disputas que vem se traçando proponho aqui um minuto de saída pela tangente para inserir um novo elemento nos debates: a empatia. Uma empatia pelo próximo, semelhante a que Victor Hugo nos apresenta com o bispo de Bienvenu. Encontrar em nós o rosto, a expressão destes que perderam talvez o mínimo que tinham para sobreviver, e que terão de mais uma vez recomeçar do nada. Alguns sem documentos ou sem os pequenos elementos que guardavam no seu recanto de reclinar a cabeça.
Ainda neste paralelo literário cabe outra imagem: a de que cada morador que habitava a torre Wilton Paes é um pouco de Jean Valdjean, marcado para o resto da vida com a alcunha do miserável, do marginalizado, do procurado, do outro que não deveríamos ser. E quem o marca? provavelmente os verdadeiros miseráveis de “alma” em um sentido mais amplo como Victor Hugo nos traz. No fim todos somos os miseráveis de algum tipo, muitos de nós, por exemplo, são capazes de manter a condenação pública a vítima, seguindo caminhos obsessivos como o de Javert. Deixamos na deriva a possibilidade e a potencia da empatia, de se enxergar no próximo e ver que este próximo também somos nós.
Enquanto aqui escrevo, outros também escrevem sobre o tema por diversas óticas, alguns grupos do capital imobiliário e construção civil aproveitam para tentar dar o bote nas edificações subutilizadas e no potencial construtivo, movimentos se articulam para resistir e garantir as pautas de moradia para todos, e os precarizados continuam precarizados, traçando uma trajetória de táticas de sobrevivência.
E nós, todos os miseráveis, onde estamos e o que pensamos ou falamos? Seguiremos com a condenação perpétua à miséria e suas vítimas cotidianas? Ainda que qualquer racionalidade demonstre que há uma falta clara de política pública de direitos a cidade, ao urbanismo, a paisagem, de habitação
Preocupa perceber como, em meio a polarização que está posta, muitas pessoas perderam em suas falas e narrativas um pouco desta expressão de vida que é se refletir no outro. Fica mais latente a ausência quando o sentimento deveria ser voltado para um outro que nada tem além do seu corpo nesta terra, muitas vezes nômade ou imigrante. Este é um perfil comum daqueles que, independente de movimentos, são os sem teto do Brasil.
Quem são estas pessoas? 
Que histórias tinham, que memórias se perderam no incêndio, que tesouros viraram pó?

Marcas nas mãos, suor, o acordar cedo diário, a tentativa do bico, as vezes bem sucedida as vezes não. São muitas conjecturas, são muitas linhas de devaneios que podemos seguir e traçar.
E aos que choram a perda do edifício enquanto arquitetura lembro:
A arquitetura do Wilton Paes projetada por Roger Zmekhol já havia morrido a anos quando os governos abandonaram os cerca de 11 mil metros quadrados de espaço construído a deterioração e não uso. A arquitetura que morre neste dia 1º de maio é outra, formada por sonhos já muito abalados e moldadas com a materialidade que podiam e com a sorte que estes anônimos lutadores tinham na jornada diária da vida.
Nós os miseráveis privilegiados que temos um teto, não gastemos nossa energia condenando os miseráveis deslocados dos direitos mínimos de cidadania e tentemos, ao menos minimamente reconstruir por estes nossa empatia.
-Pai, quem são essas pessoas naqueles carros?
-Forçados! — respondeu Jean Valjean
-E para onde vão?
-Para as galés!
(…)
-Pai, ainda são homens? — tornou ela, convulsa por um tremor geral
-Às vezes! — disse o miserável


publicado originalmente em: https://medium.com/@bertame/todos-somos-miser%C3%A1veis-dcb2d8372819